Crónica de Luísa Marinho: O vinho estará pronto na próxima estação

um nevoeiro denso lembrou-me que é certo que o outono está a chegar e que ainda existem quatro estações. E que também não serei a única portuense a pensar que esta estação cai bem à cidade.

Não é que não venham aí ainda muitos dias de calor. É que, como se ouve dizer por aí, o clima está a mudar e o frio chega mais tarde… E é certo. Já poucas vezes o nevoeiro sobe do rio ou do mar, como antigamente, para deixar a baixa coberta de tons (ainda mais) cinzentos.

Mas há uns dias, ao fim da tarde, e em apenas 20 minutos de viagem, a cidade mudou. O soalheiro fim de tarde no centro do Porto foi-se tornando mais escuro à medida que me dirigia para junto do rio. Um nevoeiro denso lembrou-me que é também certo que o outono está a chegar e que ainda existem as quatro estações. E que também não serei a única portuense a pensar que o outono cai bem a esta cidade. E percebe-se porquê. Há um certo conforto, pelo menos nestes primeiros meses em que ainda não é preciso ligar o aquecedor, nas cores, nos aromas e na vida nova que a cidade vai ganhando. As primeiras folhas amarelas já caíram dos ramos e em breve um dos quadros mais bonitos da cidade começará a ganhar forma: o tapete vermelho fogo da Alameda dos Liquidâmbares, no Parque de Serralves.

Quem não puder passear por lá, tem sempre outras alamedas mais acessíveis. A das Tílias, nos renovados Jardins do Palácio, ou a dos Plátanos, no Jardim da Cordoaria. Ambas terão também folhas douradas e laranjas a colorir o chão. Junto ao rio, há outras vidas. Ao estuário do Douro já chegaram, um pouco antes da época, algumas imponentes garças-reais para fazerem companhia às gaivotas, ao guincho-comum, ao maçarico-das-rochas e aos patos e gansos que por lá andam. A chegar deve estar também o corvo-marinho-de-faces-brancas.

Sabendo que não sei durante quanto tempo o outono será assim, e quanto disto se vai manter, penso que o melhor é aproveitar o que a época dá. E que pode ser o cheiro das castanhas assadas na rua, o sabor dos doces dióspiros e das tangerinas em época certa. E não é só. Não longe do Porto, basta ir rio acima, as uvas, é também certo, já fermentam nas adegas. Em breve haverá jeropiga e água-pé para compor os magustos. Os vinhos, esses, só estarão prontos na próxima estação.

É confortável pensar que existe uma certa permanência no que nos rodeia, mesmo que isso não seja propriamente verdade. Mas é difícil evitar senti-lo quando somos animais de hábitos, de rotinas, que se entusiasmam com pequenos prazeres estéticos, sensoriais e que entretêm o tempo a pensar nos próximos dias e anos.

Como Damiel, o anjo do filme de Wim Wenders “As Asas do Desejo”, que mesmo testemunhando a dor humana, deseja ser homem. E quando cai para a terra, num dia frio, realiza emocionado e feliz os seus primeiros desejos: esfregar as mãos uma na outra e aquecê-las numa chávena de café. Quem nunca sentiu o conforto de um copo quente nas mãos nos dias frios?

Por isso, na próxima segunda-feira, quando o despertador tocar, às 8h50, sei que estou a acordar com o outono. E vou levantar-me ansiosa para sentir o cheiro do petricor trazido pelas primeiras chuvas.

 

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