Crónica de Inês Cardoso: Os lugares são iguaizinhos às pessoas

"Os lugares são iguaizinhos às pessoas. Se não sairmos do sítio, será mais difícil acumularmos sabedoria.", escreve Inês Cardoso. (Fotografia: Leonel de Castro/Global Imagens)
Não há definições únicas de uma cidade. Há modos de ver. Alguns mais generosos e entusiastas, outros mais receosos e desconfiados.

Se três pessoas diferentes forem a uma mesma cidade e tiverem que a descrever, pode acontecer que o resultado pareça, aos olhos de quem escuta, a descrição de três cidades diferentes. O nosso olhar nunca é científico ou límpido. Vemos de acordo com uma perspetiva e história que é sempre individual. Vemos influenciados pelo nosso estado de espírito, pela solidão ou pela companhia, por aquilo que carregamos às costas e de que nem sempre conseguimos desligar-nos para absorver a novidade que nos tenta agarrar.

Não há definições únicas. Há modos de ver. Alguns mais generosos e entusiastas. Outros mais receosos e desconfiados. Abertos à diferença e ao que nos confronta com a forma de ser outro. Ou resistentes e sempre à procura de ver repetidas as nossas próprias seguranças e confirmadas as certezas que levávamos à partida.

Começámos por ser nómadas e não é por acaso que caminhar continua a ser uma experiência intensa. Há peregrinações feitas com objetivos espirituais, mas os caminhos encerram em si infinitos propósitos. Ao caminhar confrontamo-nos com os nossos próprios limites e escutamos as mais variadas vozes interiores. Cruzamos outros, ouvimos as suas versões, questionamos o sentido dos passos e o que é, afinal, a meta. E a metáfora é ainda mais intensa quando levamos mochila às costas. Cada objeto pesa e somos obrigados a escolher apenas o essencial. Tal como na vida só com sabedoria vamos aprendendo a libertar tralha e a carregar connosco simplesmente aquilo que nos acrescenta.

Quanto menos tralha levarmos dentro de nós, mais espaço haverá para apreendermos o novo. É por isso que os lugares são iguaizinhos às pessoas: não se trata apenas do que são, mas do espaço que lhes damos e daquilo que o nosso olhar lhes permite ser.

Há lugares onde voltamos e moramos sempre. Não porque sejam necessariamente ricos, mas porque nos conquistaram e se fizeram nossos. Lugares que revisitamos com prazer, mesmo que passemos muito tempo sem lá voltar. Lugares com que sonhamos e pelos quais nos esforçamos, mas que acabam por revelar-se menos marcantes do que esperávamos. E até lugares em que uma única visita basta. Mas em qualquer caso, mesmo nestes, a viagem vale a pena. Porque só ela nos permite saber e decidir. De acordo com os nossos próprios critérios, porque todas as ligações são irrepetíveis.

Cada lugar, como cada pessoa, enriquece-nos. Até naquilo que não queremos e que decidimos não ser para nós. O importante é que, em cada viagem, nos esvaziemos do excesso de nós para que o outro possa entrar. As ideias feitas e as expectativas podem ser uma armadilha que nos impede de ver aquilo com que não contávamos.

Os lugares são iguaizinhos às pessoas. Se não sairmos do sítio, será mais difícil acumularmos sabedoria. É provável que haja alguns tropeções nos trajetos mais difíceis. Mas são esses que, no final de contas, nos permitem ser exatamente quem somos.

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