Roteiro por Beja, entre gastronomia e cultura com 2500 anos de história

Povoada há milhares de anos por diferentes civilizações, Beja, caiada de branco, é hoje um lugar que merece ser (re)descoberto com vagar. Um roteiro embalado pelas vozes do cante alentejano, temperado pela comida típica e trabalhado pelas mãos de quem sabe.

Desconfiado, D. Dinis interpela D. Isabel de Aragão para saber o que ela esconde no regaço protegido com as mãos. “São rosas, senhor, são rosas!”. “No inverno?”, questiona admirado. E eis que a rainha transforma, por milagre, os pães que levava para dar aos mais pobres em rosas vermelhas, para espanto da audiência. O episódio ocorrido no Castelo do Sabugal foi o que a proclamou Rainha Santa, e apesar de não ter relação óbvia com Beja, é a passagem histórica mais reconhecível na visita encenada ao CASTELO DE BEJA.

Isabel, D. Dinis, Beatriz de Castela e Gonçalo Mendes da Maia, interpretados por técnicos do município com gosto pelo teatro, dão as boas-vindas e guiam os visitantes pelo interior da torre de menagem de 40 metros de altura, a mais alta do país. Construído no século XIII em estilo gótico por D. Afonso III, pai de D. Dinis, o castelo é dado a conhecer por meio de diálogos mais ou menos fiéis à época, que destacam a beleza das suas salas: uma com teto ogival de inspiração árabe e outra com várias figuras decorativas antropozoomórficas.

Quatro técnicos municipais dão vida a personagens históricas ligadas a Beja. (Fotografia de Reinaldo Rodrigues/GI)

O castelo de Beja tem a torre de castelo mais alta do país. (Fotografia de Reinaldo Rodrigues/GI)

A páginas tantas, surge também na narrativa Gonçalo Mendes da Maia, alcunhado O Lidador pela forma heroica como combateu os muçulmanos às portas de Beja (e cuja estátua se encontra numa das salas do castelo). Antes do fim, a visita propõe a visualização de um curto vídeo com a cronologia da ocupação do território desde a Idade do Ferro até à contemporaneidade, uma viagem no tempo que ganha expressão no NÚCLEO MUSEOLÓGICO DA RUA DO SEMBRANO, instalado em pleno centro histórico da cidade.

Lá dentro, é possível caminhar literalmente sobre a História, com os sapatos devidamente protegidos para não riscar as lajes de vidro que protegem os vestígios de um complexo termal romano encontrados in situ. E não só. “O elemento fundamental que permite traçar a origem da cidade há 2500 anos é essa parede de pedra com quase três metros de largura, que foi a base de uma muralha que existiu aqui na Idade do Ferro [na segunda metade do primeiro milénio antes de Cristo]”, aponta, com a mão, o técnico municipal Rui Aldegalega.

Ainda que, à data de hoje, não se saiba muito bem que povo ocupava o território de Beja, a existência de uma muralha desta dimensão atesta que seria já uma cidade importante, para a qual foram decisivos a localização num planalto, os solos férteis e a abundância de água. Cerca de 300 anos depois, os romanos batizaram-na de Pax Julia e dotaram-na de grandes equipamentos. Entre o rol de objetos do quotidiano, entre as idades do Ferro e a Moderna, destaca-se a figura de um boi em terracota, do século VI a.C, dedicada ao culto funerário.

Neste museu, caminha-se sobre ruínas de um complexo termal romano. (Fotografia de Reinaldo Rodrigues/GI)

Este boi em terracota, do século VI a.C, fez uma capa da National Geographic. (Fotografia de Reinaldo Rodrigues/GI)

 

O regresso das talhas

Espraiada no planalto com os solos mais férteis do Alentejo – os famosos barros de Beja -, a cidade sempre teve condições ideais para desenvolver a agricultura, pecuária e indústria mineira. E também o artesanato, de que a vila de Beringel foi um pólo dinamizador. Outrora um dos mais importantes centros oleiros, hoje só tem uma olaria em funcionamento, a de ANTÓNIO MESTRE, de 65 anos. De sete irmãos, foi o único que seguiu plenamente a veia manual incutida pelo pai, que preferia que estivesse na olaria em vez de a jogar futebol.

“A vida nunca foi um mar de rosas”, confessa António, sem esquecer a dureza da rotina de oleiro, quando saía de casa de madrugada com um carro de burros para ir vender loiça no mercado de Beja, “há 50 e tal anos”. Aos poucos, os alcatruzes, alguidares, assadores e bilhas foram substituídos por utensílios de outros materiais e ele teve de se adaptar, focando o trabalho nos vasos grandes e nas talhas, que de há uns anos a esta parte voltaram a ser usados em adegas. Na oficina, as maiores têm capacidade até 500 litros.

António Mestre dedica-se à construção de talhas de barro. (Fotografia de Reinaldo Rodrigues/GI)

Oleiros de outras zonas do país também as fazem, mas o mestre assegura que estas ficam mais resistentes, pois o barro virgem de argila que apanha em terrenos próprios é o melhor. Durante 35 anos, Ismael e o pai – que comprara a centenária ADEGA TÍPICA 25 de ABRIL no centro pedonal de Beja – também se dedicaram ao vinho de talha, e hoje os comensais podem ter a experiência de comer ao lado delas e do alambique de cobre onde destilavam as massas sobrantes para fazer aguardente. As maiores levam 1200 litros, conta o anfitrião.

Dedicado à cozinha alentejana desde sempre, o restaurante aposta em receitas tradicionais como açorda de bacalhau, um prato “que já não se vê em muitos restaurantes”, diz Ismael, sopa de cação, migas com carne de porco do alguidar frita e sopas de tomate. E se no copo a aposta se faz em referências de produtores do Baixo Alentejo (o vinho da casa é feito, ainda, na talha, em Vila de Frades), a fechar de forma doce há que provar a sericaia com ameixa de Elvas e o pudim de requeijão com amêndoas, ambos feitas na casa.

Neste restaurante, come-se entre antigas talhas de vinho. (Fotografia de Reinaldo Rodrigues/GI)

Sopa de cação, um dos pratos típicos da Adega Típica 25 de Abril. (Fotografia de Reinaldo Rodrigues/GI)

 

Cantar o amor e o campo

Terra de muitos sabores e saberes, Beja não se deixa conhecer em pleno sem uma visita ao CENTRO UNESCO para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial, muito próximo do restaurante. É lá que Manuel Pica, de 62 anos, dedica várias horas por dia ao fabrico das cadeiras alentejanas tradicionais (menos coloridas que as do Alto Alentejo), cujos assentos são feitos com buinho. O processo manual requer cinco dias de trabalho, conta o artesão, desde a recolha desta planta aquática à secagem e humedecimento para a malear.

“Procuro atualizar as técnicas antigas para dar alguma contemporaneidade às peças”, nota, apontando para o encosto de uma cadeira já terminada. Nos workshops abertos aos visitantes, o mestre ensina a fazer o entrançado de buinho, técnica que aplica também a outros materiais e peças para o dia-a-dia. No laboratório expõe igualmente peças feitas com madeira, arame e cortiça que traduzem a sua versatilidade manual – coisa que aprendeu a solo, “a ver fazer”, desde que em miúdo lançou mãos à produção dos próprios brinquedos.

Manuel Pica dedica longas horas ao entrançado de buinho e ao artesanato. (Fotografia de Reinaldo Rodrigues/GI)

Uma vez dedicado à salvaguarda e promoção do património imaterial do Alentejo – no qual se incluem a viola campaniça, os cordofones e a literatura oral -, o Centro é também palco dos ensaios assistidos do grupo CANTADORES DO DESASSOSSEGO, na terceira quinta-feira de cada mês, com entrada gratuita. Fundado há oito anos e com 24 elementos com idades entre os 20 e mais de 80 anos, o grupo ensaiado por José Diogo Bento canta modas do cancioneiro tradicional e original, mantendo viva a paisagem musical alentejana.

O trabalho árduo no campo e o amor (com os géneros feminino e masculino metaforizados na laranja e no limão ou na rosa e no cravo) são os temas principais das modas, que o grupo tem o cuidado de reproduzir tal e qual as ouve, de fonte oral ou não. “O cancioneiro é o conjunto de canções que foram passadas ao longo de gerações, embora haja recolhas de som e escritas, como o cancioneiro de Serpa”, diz Rui Óscar Teixeira, porta-voz do grupo. Temas que, ainda que os estrangeiros não entendam a letra, são universais: “Há quem se emocione e até se arrepie”.

O grupo tem 24 elementos, com idades entre os 20 e os 80 anos. (Fotografia de Reinaldo Rodrigues/GI)

 


Descanso no Vila Galé Collection Monte do Vilar
O charme de um agroturismo

Imerso nos 1620 hectares da Herdade Clube de Campo (que muitos poderão associar ainda ao nome Herdade de Santa Vitória), o recém inaugurado Vila Galé Collection Monte do Vilar pode ser um refúgio para casais que procuram o sossego entre a natureza, pois recebe apenas hóspedes com idade acima dos 16 anos. Decorados em verde e roxo, os 12 quartos homenageiam as “maravilhas do Alentejo” com papéis de parede ilustrados sobre as camas, cada um com código QR com informação sobre o monumento – o Castelo de Monsaraz, o Paço Ducal de Vila Viçosa e o Templo Romano de Évora, entre outros. No edifício principal funcionam a piscina exterior, o bar Fidélio, duas salas de estar com livros e jogos e o restaurante Inevitável, cujo menu tem pratos alentejanos com toque Vila Galé. Os vinhos são feitos na herdade, morada também do Nap Kids e do Alentejo Vineyards & Olive.

O novo Vila Galé Monte do Vilar fica numa extensa herdade. (Fotografia de Reinaldo Rodrigues/GI)


Roteiro de Beja originalmente publicado no suplemento Evasões de 12 de janeiro de 2024.



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