Santa Maria: natureza e cultura na ilha mais antiga dos Açores

Farol de Gonçalo Velho, Santa Maria (Fotografia de Reinaldo Rodrigues/GI)
Quem gosta de natureza e de boas histórias encontra em Santa Maria o lugar ideal para passar uns dias, quem sabe, uma vida. Nesta ilha que passou séculos a ser invadida por piratas, os seus habitantes respeitam as memórias e estão abertos ao mundo e às suas múltiplas expressões. Aqui, faz-se cerveja artesanal, ouve-se blues e e inova-se nos produtos seculares, como os famosos biscoitos.

Dalberto Pombo tinha 24 anos quando se mudou da terra natal, Figueira de Castelo Rodrigo, para Santa Maria. Corria o ano de 1952 e o aeroporto da ilha açoriana, para onde foi trabalhar como escriturário de tráfego, estava nos tempos áureos. Tinha sido construído há sete anos, ainda durante a II Guerra Mundial, pelo exército americano. Mas não eram histórias de guerra as que mais interessavam ao jovem beirão, antes as maravilhas do mundo natural e as suas dinâmicas. Com uma energia inesgotável, Dalberto rapidamente se revelou um naturalista com vontade de conhecer a fundo todos os habitantes da ilha e das suas águas.

No Centro de Interpretação Ambiental Dalberto Pombo, que funciona paredes meias com a Casa dos Fósseis, no centro da Vila do Porto, fica a conhecer-se a história singular deste homem e das suas descobertas, como por exemplo, as várias espécies que revelou à ciência (algumas acabaram por levar o seu nome) e o trabalho essencial para se localizar a rota das tartarugas, que partem da Florida para passarem a “adolescência” em águas açorianas.

Centro de Interpretação Ambiental Dalberto Pombo / Casa dos Fósseis (Fotografia de Reinaldo Rodrigues/GI)

Neste centro abordam-se os seus interesses, pode ver-se a correspondência trocada com investigadores de vários países e também os boletins que publicou com o Clube de Jovens Naturalistas. Uma boa introdução ao mundo natural desta ilha de pouco mais de 15 quilómetros de diâmetro, a mais a sul e a oriente do arquipélago, a primeira ilha que se formou (duas vezes), e também a única dos Açores que tem jazidas fósseis, que se podem conhecer ao lado, na Casa dos Fósseis.

Pelas belezas naturais e a apelativa tranquilidade, Santa Maria foi seduzindo muita gente ao longo dos tempos, como é também o caso de Marc Oliver, alemão de Munique que vive ali há duas décadas e que nos últimos anos se tem dedicado à cerveja artesanal. “Vim definitivamente em 2000, mas desde 1992 que passava cá uns meses”. Conheceu a mulher, a mariense Graciete, em 1994. Mas antes de se apaixonar por ela já se tinha apaixonado pela ilha. “Gostei muito do sossego e decidi comprar uma casa aqui, mas não tinha dinheiro e comecei a trabalhar como taxista em Munique. Trabalhava meio ano lá e passava aqui o resto do tempo.” Depois de se terem casado em 97, viveram três anos em Munique e quando o primeiro filho nasceu regressaram. Com o tempo, Marc abriu um restaurante, um dos mais concorridos de Vila do Porto, A Travessa, e foi aos seus clientes que deu a provar as experiências cervejeiras, que hoje são a cerveja A Nossa. O sucesso foi grande e acabou mesmo por abrir esta pequena fábrica, há quatro anos. Hoje, produz uma dúzia de estilos e vai fazendo edições especiais.

Marc Oliver (Fotografia de Reinaldo Rodrigues/GI)

A fábrica fica numa incubadora de empresas em Vila do Porto, no terreno do aeroporto, espaço onde também trabalha a pasteleira Rosa Cabral. Natural da ilha, passou 20 anos fora e quando voltou decidiu dar andamento a um projeto que desde a adolescência não lhe saía da cabeça. O que lhe originou o gosto pela arte foi um episódio cheio de dramatismo mas com final feliz que lhe aconteceu quando tinha nove anos. “Quando a minha irmã nasceu, a nossa mãe ficou doente e eu tive de cuidar da casa, de cozer o pão em forno de lenha”, conta. Era a primeira vez que o fazia, e teve de ser com “trigo novo, difícil de trabalhar”. Fê-lo sozinha, à revelia dos protestos da mãe. “Os pães saíram baixinhos, todos colados uns aos outros, mas ficaram cozidos. Quando o meu pai chegou do trabalho, a minha mãe gritou-lhe, ‘Vê lá a asneira que ela já fez’. O pai comeu e respondeu, ‘Maria, nunca provei pão tão saboroso na minha vida. Ela vai-se tornar uma grande mulher’.”

Este estímulo motivou-a a querer aprender cada vez mais e despertou-lhe o interesse pela tradição. Quando voltou a Santa Maria, percebeu que esta não tinha um produto com “imagens bonitas” para vender às pessoas que passavam em visita. “Resolvi fazer um levantamento de receitas antigas e de técnicas que estavam a desaparecer e lancei o projeto A Cagarrita.” Aos famosos biscoitos de orelha, Rosa Cabral juntou-lhes as júlias e os dedos de dama, entre outros. E também criou alguns, como os fósseis doces, para homenagear o Geoparque da ilha. Ao vizinho cervejeiro, vai buscar material para fazer os biscoitos de cerveja.

Rosa Cabral (Fotografia de Reinaldo Rodrigues/GI)

A tradição secular da biscoitaria da ilha descobre-se também na Cooperativa de Artesanato de Santa Maria, freguesia de Santo Espírito. “O problema destes biscoitos é abrir o pacote”, brinca Miguel Marques, da Smatur, empresa local de passeios turísticos, na entrada da loja onde se podem comprar os vários produtos que aqui se fazem. Na sala das traseiras assiste-se ao vivo ao trabalho de tecedeiras, mas o aroma do forno a lenha e dos biscoitos acabados de fazer que emana da cave conduzem irremediavelmente para as escadas. No conforto de uma cozinha quente, Isilda Chaves, que ali trabalha há duas décadas, vai tirando fornadas de biscoitos de orelha enquanto prepara a massa de pão para o próximo turno. Estes biscoitos são os mais famosos da ilha, “faziam-se em ocasiões de festa e ofereciam-se aos afilhados pelo Natal”, conta.

Artesanato é o que se faz também no Só Atelier, projeto de quatro amigas, criado há um ano na Vila do Porto e com uma vertente mais contemporânea. Márcia Santos, Tânia Barros, Sofia Moreira e Leonor Pimentel querem, ao mesmo tempo que desenvolvem os seus projetos, da pintura à cerâmica, passando pelos têxteis, promover oficinas e exposições dentro destas áreas, inspiradas na cultura e na história da ilha. Todos os dias da semana há oficinas a decorrer. É só entrar e perguntar.

Só Atelier (Fotografia de Reinaldo Rodrigues/GI)

Piratas e blues

Foi da história da ilha que saiu o nome da associação que atualmente organiza o Santa Maria Blues, festival português mais antigo do género, que cumpre este ano a vigésima edição. António Monteiro, que está na organização do evento há uma década, é um mariense orgulhoso, e no lugar dos Anjos, onde cresceu, abriu está a fazer dois anos, o Bar dos Blues.

“Não sou o criador do festival, mas dei-lhe a dimensão que ele tem hoje”, diz. A primeira edição foi na antiga fábrica do peixe, edifício que se encontra abandonado, ali ao lado. Abandonado estava também aquela frente marítima, onde agora se ergue o bar com a esplanada virada para o Atlântico, e com um interior preenchido com fotografias de muitos concertos do festival.

Bar do Blues (Fotografia de Reinaldo Rodrigues/GI)

“A minha família era deste lugar e tenho um amor muito grande por isto.” Nos últimos anos, quem passasse por ali, a única coisa que podia ver era entulho de obras e mato. “Isto era um baldio, terra de ninguém”, lembra António, que é também presidente da Junta de Freguesia de São Pedro e da Escravos da Cadeinha, associação que organiza o Santa Maria Blues. O estranho nome é explicado de seguida: “A ilha foi muito assaltada por piratas do norte de África. Vinham para esta zona para roubar as riquezas que as caravelas portuguesas e espanholas traziam. Mas quando ficavam sem mantimentos, saqueavam a ilha e raptavam pessoas para trabalharem como escravas nas tinturarias do norte de África e também para pedir resgates”. Uma das piores incursões aconteceu em 1616, quando foram levados mais de 200 marienses, “uma grande tragédia para a nossa ilha”. O clero fez pedidos à corte para os tentar resgatar, mas só uns 30 voltaram.

No regresso, constituíram a Irmandade de Nossa Senhora dos Anjos dos Escravos da Cadeinha (correntes que prendiam os membros das pessoas escravizadas). O nome foi então dado a esta associação, formada em 2004 para homenagear os marienses de que muitos serão descendentes. O objetivo foi desde logo o de “alargar a época festiva da ilha de Santa Maria”, que antes se concentrava em agosto, com um rali, várias festas e o Festival Maré de Agosto, que continua a realizar-se na praia Formosa. A proposta era organizar um festival de jazz em julho, mas para não colidir com o Angra Jazz, da Terceira, acrescentou-se blues ao cartaz. Depois desta experiência percebeu-se que o que resultava era mesmo este último e em 2005 já se realizou só com blues.

Estrelinha-de-Santa-Maria, por Borldalo II (Fotografia de Reinaldo Rodrigues/GI)

Dos acontecimentos trágicos que foram as várias invasões da ilha, não apenas por piratas argelinos, mas também por corsários ingleses, franceses e espanhóis, continua a haver vestígios, como os silos, também chamados de covas matamouros, buracos no chão tapados com pedras, que serviam para esconder os cereais dos invasores e também crianças, visto estas estarem muito vulneráveis aos raptos. “Também podiam servir de armadilhas para os piratas”, explica Miguel Marques, da Smatur. A empresa organiza passeios pedestres, de BTT, excursões pela natureza, história e cultura da ilha, e também observação de aves, esta muito especial porque, com alguma sorte, permitirá ver a estrelinha-de-Santa-Maria, o mais pequeno pássaro da Europa e que só se pode observar aqui. Esta ave é homenageada num mural de Bordalo II, na Vila do Porto.

MUSEU DE SANTA MARIA

Nesta casa tradicional, guiam-se os visitantes por uma viagem ao passado. Mostra-se a cozinha tradicional, com os seus recipientes de barro, matéria-prima local que durante décadas foi fundamental para a ilha, explica-se o que são as Festas do Império do Divino Espírito Santo e as famosas sopas servidas na ocasião, as do Império, feitas de carnes, vegetais, pão e aromáticas – hortelã e endro; ou de como o cagarro, hoje em dia ave protegida, foi em tempos fonte de alimento, de óleo e de penas, que “serviam para rechear almofadas”. Por isso, os marienses são ainda atualmente conhecidos como “cagarrinhos”.

Museu de Santa Maria
(Fotografia de Reinaldo Rodrigues/GI)

MESA D’OITO

É na rua principal de Vila do Porto – Rua Teófilo Braga – que se encontra o Mesa d’Oito, restaurante que integra o hotel Charming Blue. Só funciona ao jantar, e tem uma ementa variada, muita dela à base de produtos locais, como o atum grelhado ou o bife de vaca. Tem também opções para vegetarianos.

Peixe grelhado no Mesa d’Oito (Fotografia de Reinaldo Rodrigues/GI)

HOTEL COLOMBO

Quartos grandes e luminosos, com vista para o Atlântico, uma piscina exterior, bar com esplanada, são algumas das comodidades deste hotel de quatro estrelas aberto desde 2004. Fica a menos de 10 minutos de carro (cerca de meia hora a pé) do centro de Vila do Porto. Quem for caminhar junto à piscina pode conhecer o Chico, papagaio-da-Patagónia, e mascote do hotel.

 

VISITAR

Museu de Santa Maria
Rua do Museu, Santo Espírito
Tel.: 296 884 844
De terça a domingo, das 10h às 17h30, Encerra à segunda-feira.
Grátis

Cooperativa de Artesanato de Santa Maria
Termo da Igreja, Santo Espírito
Das 8h às 12h30 e das 13h30 às 16h. Sábado, das 9h às 14h. Encerra ao domingo.

Casa dos Fósseis | Centro de Interpretação Ambiental Dalberto Pombo
Rua Teófilo Braga,/12/14, Vila do Porto
Tel.: 296 206 798
Das 9h às 12h30 e das 13h30 às 17h. Não encerra.

Só Atelier
Rua Teófilo Braga, 95, Vila do Porto
Instagram: so.atelier.azores
Das 10h às 13h e das 14h às 17h. Encerra domingo. Abre ao sábado para oficinas.

DORMIR

Hotel Colombo
Lugar da Cruz Teixeira, Vila do Porto
Tel.: 296 206 004
Preço: a partir de 65 euros, quarto para duas pessoas, com pequeno almoço.

COMER e BEBER

Bar do Blues
Lugar dos Anjos
Tel.: 296 886 801
Das 16h às 23h. Encerra à segunda-feira.

A Travessa

Rua Dr. Luís Bettencourt 97, Vila do Porto
Tel.: 964 960 191
Das 8h às 22h. Domingo, das 12h às 22h. Encerra ao sábado.
Preço médio: 10 euros

Mesa d’Oito

Rua Teófilo Braga, 31, Vila do Porto
Tel.: 296 882 083
Das 19h às 23h. Encerra à segunda-feira.
Preço médio: 25 euros

A Nossa – Cerveja Artesanal de Santa Maria
Rua de Ponta Delgada, Aeroporto de Santa Maria
Tel.: 964 960 191

A Cagarrita – Padaria & Doçaria Tradicional

Rua de Ponta Delgada, Aeroporto de Santa Maria
Tel.: 296 248 388
Das 7h às 17h. Não encerra.

FESTIVAIS DE MÚSICA

Santa Maria Blues
18 a 20 de julho
www.santamariablues.com

Maré de Agosto
22 a 24 de agosto
www.maredeagosto.com

Maia Folk
12 e 13 de julho
www.facebook.com/maiafolk

A “Evasões” viajou a convite de Casas Açorianas – Associação de Turismo em Espaço Rural




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