Crónica de Nuno Cardoso: A casa no campo

(Fotografia: Pixabay)
No campeonato das memórias, quem ainda tem uma casa de família no campo tem tudo. É um luxo que não se mede em tipologias, metros quadrados, acabamentos e peças decorativas.

O último pôr-do-sol do mês de setembro vestia o céu com os habituais tons de laranja, vermelho e rosa, entre as sete da tarde e as oito da noite, quando me sentei na simpática varanda do quarto de hotel, com vista direta para o complexo de dunas que acompanha os areais da zona norte de Peniche, casos da Praia da Cova de Alfarroba e da Praia de Peniche de Cima. Peguei no livro que tinha escolhido meio à pressa, quando saí de Lisboa, da pilha de livros que ainda estão por ler, e comecei a folheá-lo a bom ritmo e sem timidez.

“Nessa Altura Já Cá Não Estamos”, novo romance da escritora espanhola Lola Mascarell, baseia-se em acontecimentos da vida da autora, e foca-se na luta e vontade de uma mulher em preservar a casa de campo e de férias da sua família, numa pequena localidade nos arredores de Valência, depois de os pais se verem obrigados a colocá-la no mercado e vendê-la, face ao custo de vida, entre outros motivos. Dei por mim a pensar sobre a coincidência do tema, na mesma tarde em que milhares se reuniam em 24 cidades do país, em manifestações simultâneas pelo direito à habitação.

No campeonato das memórias, quem ainda tem uma casa de família no campo tem tudo. É um luxo que não se mede em tipologias, metros quadrados, acabamentos e peças decorativas. São, sim, as paredes carregadas de memórias, as mesas que já precisavam de um arranjo, mas que viram passar receitas sem fim, os corredores que nos viram crescer em centímetros e sabedoria – nem sempre em paralelo -, as camas e os sofás que são sinónimos de descanso, vagar e preguiça nos dias e noites longos de verão.

A casa de campo é o testemunho físico e agridoce do passar de gerações, as que ainda lhe dão vida, e as que já cá não estão. Cheira à fruta dos pomares e das vinhas, ao azeite fresco que vem do lagar vizinho, ao arvoredo onde os miúdos brincam às escondidas e os graúdos procuram sombra. É sinónimo de água fresca que corre na ribeira ou na praia fluvial para onde se corria assim que estava feita a digestão do almoço, da televisão velha que nem sempre tinha bom sinal, de conversas longas e descontraídas, dos tanques em cimento onde se lavava roupa em ritmo energético, das bicicletas arcaicas que já caíram vezes sem fim e ainda se aguentam. De tudo isto e muito mais.

“Se tiveste infância, lê este livro”, lê-se na contracapa de “Nessa Altura Já Cá Não Estamos”. Se tivermos que ser parcos em palavras, uma casa de campo é mesmo isso: infância.




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