O novo livro sobre os fumeiros e enchidos de Portugal

«Existe em Portugal uma riqueza de fumeiro sem comparação no resto do mundo»
No livro «Entre ventos e fumos», o chef, professor de cozinha e cronista Nuno Diniz descreve cerca de 120 variedades de enchidos em todo o continente e ilhas, às quais junta histórias emocionadas e muitas receitas.

Trabalhou para este livro ao longo de 14 anos, com algumas pausas. O que o atraiu tanto nesta tradição portuguesa de fazer fumeiro?
O meu percurso é um bocado ao contrário. Comecei por estar fascinado pela alta cozinha do mundo, a minha formação é essencialmente francesa. E passeava por Portugal para comer e, de repente, algo me tocou numa viagem a Montalegre. Não é muito percetível, é como o amor, a gente não sabe muito bem como é que aquilo chegou. Foi no estilo das pessoas, na simpatia, na facilidade com que nos abrem as portas, na curiosidade que têm sem querer perguntar ao mesmo tempo. Foi aí que comecei a estudar a sério a cozinha portuguesa, algo que nunca parei de fazer. Tenho quase 60 anos e estudo todos os dias.

Foi uma epifania em Montalegre.
De repente percebi que era cozinheiro, que tinha cozinhado em todo o mundo e que grande parte da cozinha do meu país, aquela cozinha mais pobre que é ao mesmo tempo a mais inventiva, era algo que me estava a passar ao lado. É a partir dessa altura que começo a olhar com outros olhos para a cozinha do meu país, começo a perceber que um prato que eu gostava e comia desde miúdo – o cozido -, tinha muito mais do que os três ou quatro enchidos que as pessoas normalmente comem. Começa aí um fascínio imenso pela terra, pela simplicidade e pela capacidade extraordinária do povo que, pegando nos mesmos ingredientes, faz coisas completamente diferentes. O que existe m Portugal é uma riqueza assustadora ao nível de fumeiro, não existe nada comparável em nenhum lugar do mundo.

Qual foi o enchido mais surpreendente que encontrou?
Consigo destacar três ou quatro. Há para mim um exemplar paradigmático da imaginação, que consegue ser brilhante ao nível de sabor, que é o chouriço de abóbora que se faz na zona de Montalegre. Leva abóbora raspada e tem uma riqueza, uma complexidade, respeita coisas tão faladas hoje como o umami, essa coisa do “novo gosto” tão falada. Quando se vai à feira do fumeiro de Montalegre, consegue-se comprar trinta chouriços de abóbora, todos diferentes no aspecto, na textura e no sabor. Ainda em Trás-os-Montes temos uma coisa extraordinária e até comovente, que é o butelo. O butelo e as casulas é uma combinação fascinante da cozinha pobre, Depois, no centro do país, aparece uma anomalia absoluta que são os maranhos, um exemplo raríssimo de um enchido feito com cabra e que leva hortelã, ingredientes não usados nos enchidos. O mais surpreendente de todos é o chouriço de farinha, ou farinheira de pano, que existe em Monchique e é um género de farinheira que normalmente leva farinha de milho, mas é embrulhado num lençol velho. Isto é extraordinário, alguém se ter lembrado de, depois de um lençol ter cumprido o seu papel na vida, de ter aconchegado desde a bebés até velhotes, ainda ter uma segunda vida para embrulhar algo que vamos comer. É obrigatório nos meus cozidos ter um exemplar e avisar as pessoas que o pano não é para comer.

Enquanto professor de cozinha, com contacto regular com jovens na casa dos 20 anos, sentem que eles têm noção da riqueza deste património?
Na escola, sou um chef de referência e os meus alunos estão, à partida, motivados para a minha mensagem – e ela é absorvida, tenho exemplos de alguns alunos que já abriram espaços onde respeitam esta forma de portugalidade. Não podemos esquecer o que é nosso e é mais fácil criar a partir do que conhecemos bem do que criar a partir do que imitamos, porque estamos a utilizar algo que não foi a nossa formação, que não comemos enquanto crianças. Mesmo quando queremos ser modernos, ou inovadores ou até chocar as pessoas, é mais fácil com uma linguagem que conhecemos. O moderno não implica a destruição do velho, é possível um compromisso entre a tradição e uma linguagem mais moderna.

Diz que é preciso conhecer para criar, mas os jovens que ensina conhecem fumeiro, têm-no na sua alimentação regular ou precisam de o descobrir?
Varia muito, por isso a resposta é sim e não – mas maioritariamente não. Sou professor de Culinary Arts, dou aulas em inglês a alunos portugueses e estrangeiros que têm, no mínimo, o 12º ano. Ou seja, têm um nível cultural mais alto. Tenho uma aluna de Chaves que me trouxe fumeiro feito em casa dela – continuam a existir jovens que fazem fumeiro. Mas genericamente, é uma surpresa perceberem que o mundo que acelerou de uma forma dramática nos últimos dez anos não se limita àquilo que vêm no instagram e no facebook.

No seu livro, a dada altura, lamenta que o contexto político não seja favorável. Fala em «legislação ignorante» vinda da Europa e «complexo excessivo com doenças». São ameaças sérias à tradição do fumeiro?
São ameaças seríssimas à gastronomia e à cultura em geral. Sou profundamente europeísta, não quero estar isolado, mas também não posso deixar que se parta do princípio que tudo o que está cá é mau e tudo o que vem de fora é bom. Corremos o risco de criar uma geração de pessoas que, se apanharem um bocadinho de bolo que caiu ao chão, vão ficar doentes. Se isto se põe em termos de doença, põe-se muito mais em termos de cultura. Tenho muito orgulho em todos os portugueses que criaram a nossa história. E gosto muito de música angloamericana, de pintura e cinema de todo o mundo. Sou um cidadão do mundo, mas isso não me faz esquecer que sou português. A mensagem que tento passar é que a forma muitas vezes errada como se lê e interpretam as políticas europeias – e em Portugal temos alguma tendência para transformar recomendações em proibições – é um risco sério, que sinto obrigação de combater.

Da sua escrita emana uma grande ternura. Emocionou-se a escrever este livro?
É evidente que sim e quando (raramente) pego nele e releio alguma coisa, volto a emocionar-me. É algo profundamente sentido, que sinto que era importante fazer e dizer. Existem também alguns fantasmas que perpassam pelo livro, mas não concretizei e não vou concretizar. É um livro que tem a ver com amizade, tem a ver com amor, com a memória e com algo que é um bocado inerente à condição humana, que é a noção de legado.

«Entre ventos e fumos. Fumeiros e enchidos de Portugal» (Bertrand Editora, 224 páginas), do chef, consultor, cronista e professor Nuno Diniz, chega hoje às bancas com o pvp de 18,80 euros.

 

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