«Fazer arroz e feijão em Portugal não é ser bom chef»

Atala colocou a culinária brasileira no mapa e trouxe a Amazónia para a alta cozinha. É um dos ativistas gastronómicos mais ativos do mundo. Prestes a completar 50 anos, ainda se emociona ao vestir a jaleca.

A sala do Simpósio Sangue na Guelra 2018 (conferência anual de gastronomia, este ano com o tema ativismo) aalaude a intervenção de Alex Atala. Com simplicidade, o chef brasileiro fala da paixão que sente por cozinhar, usando as palavras do poeta Charles Bukowski «Encontre o que ama e deixe que isso te mate». O D.O.M., o seu restaurante em São Paulo, Brasil, tem duas estrelas Michelin.

Três décadas depois de entrar na cozinha pela primeira vez, o caminho ficou mais fácil?
Não é tudo fácil, mas as coisas ficam realmente mais simples quando se é feliz. Eu falo sempre sobre a importância de estar presente. Tem que estar aqui, no momento. Eu tento transmitir isso quando falo, que eu descobri o que me faz feliz. E você?

Veio participar no Simpósio Sangue na Guelra. Ainda se surpreende nestas palestras?Com certeza. Fiquei muito impressionado com o Douglas McMaster (do restaurante Silo), porque ele não fala só de sustentabilidade na cozinha. Fala de estética. É a sustentabilidade levada a um nível superior. Fez-me pensar no meu restaurante e como eu poderia fazer mais. Ele falou do exagero que existe e eu concordo. Para quem começou a cozinhar quando se tinha vergonha de mostrar a jaleca, hoje é um exagero.

A forma como encaramos hoje a culinária está errada?
Não sei se errada é a palavra, mas com exageros. O primeiro é achar que o dinheiro é a coisa mais importante na vida de uma pessoa. Sou pai de jovens e, na cabeça deles, só vão ser felizes se tiverem dinheiro. Para! Espera aí. Não ter dinheiro não é estar fadado à infelicidade. A segunda é a desvalorização do ingrediente. Porque jogamos comida fora? Existe uma relação de valor com o alimento que está corrompida.

Tem a ver com a massificação da comida?
Com a abundância. E a cozinha portuguesa é um exemplo disso. Vem de momentos duros, da pobreza e olha como é rica e diversa. Espero que o mundo não tenha que passar por misérias para valorizar o ingrediente de novo.

Como mudamos essa mentalidade?
Pela educação, fundamentalmente. Os cozinheiros podem ser um bom exemplo. Dou sempre o exemplo da Bela Gil, no Brasil. Ela não é uma cozinheira profissional. É uma dona de casa que repensou o seu estilo de vida. E tem filhos, o que legitima o discurso. É incrível o que ela está a fazer. Mesmo com todas as polémicas, que seja, nós rimos delas.

As polémicas ajudam a passar uma mensagem?
Estou sempre envolvido em polémicas, mas sei que o caminho não vai ser sempre certo nem sempre errado. As polémicas podem trazer reflexão. Por mais cruel que seja matar uma galinha em frente à plateia [fê-lo no MAD FOOD CAMP, em 2013], todas as galinhas que comemos foram mortas. As pessoas fecham os olhos para o processo. Volto a dizer que Portugal é um bom exemplo. O que são enchidos? O aproveitamento máximo do animal. Isso demonstra respeito.

O chef brasileiro foi um dos convidados da edição deste ano de Sangue na Guelra, que teve como tema Ativismo na Gastronomia.

 

Entrou num curso de cozinha por acaso e hoje é um dos melhores chefs do mundo. Para se ser o melhor é preciso ter um lado obsessivo?
Com certeza. Durante muitos anos da minha vida não existia outra coisa que não cozinhar. Em algum momento da minha vida, percebi que estava preparado para falar sobre comida. Não é um exagero dizer que eu fui o primeiro chef no mundo a falar da antropologia dentro da cozinha. A teia humana que precede o alimento que eu vou cozinhar.

Esse interesse surge com a ida para a Amazónia?
Sim, surge há 15 anos quando compro uma terra na Amazónia. Erro muito e descubro que não sabia lidar com esse ambiente. Então, procurei antropólogos, sociólogos, outros saberes para entender com o que estava a viver. Desde então, tenho procurado aprofundar esse conhecimento e trazê-lo para a minha comida.

Há 15 anos já era um chef reconhecido mas a sua comida mudou. O que seria a cozinha do Alex Atala sem a Amazónia?
É engraçado pensar nisso. Eu nunca teria um restaurante fora do Brasil. Eu preciso daquele ingrediente. O Brasil não está pronto para exportar a sua cultura. Esse é o trabalho que eu acho fundamental ser feito, essa estruturação de cadeia para que o ingrediente chegue aos mercados. Esta é a razão para não haver um restaurante bom brasileiro fora do Brasil.

O Brasil tem um problema de aproveitamento de recursos. O comum dos brasileiros come má carne, mau peixe. Porque ainda é assim?
Existe uma desconexão enorme, uma falha
grande na educação. Vocês estão novamente à nossa frente. O jovem português aprende a valorizar um bom peixe, uma carne que vem do campo. No Brasil, não estamos autorizados a trabalhar com carne diretamente do campo. Tem de passar por um frigorífico. É uma ditadura das grandes empresas.

E é uma luta constante.
E sem fim, para já. Quando você se vê como um cozinheiro ativista, às vezes tem que lutar por causas que nem você mesmo acredita.

Mas já ganhou algumas. Numa altura em que os brasileiros não achavam que o arroz e feijão eram dignos, trouxe-os para o D.O.M. e disse: «A nossa comida pode ter qualidade mundial».
Tem a ver com o cenário dos anos 1990. Um chef chegava e fazia foie-gras, trufa. Parecia ser bom a fazer coisas que nunca ninguém tinha comido. Quer mostrar que é bom chef? Faz o que eu conheço. Falando de forma exagerada, fazer arroz e feijão em Portugal não é ser bom chef. Aqui, ser bom é fazer açordas, peixe, caldeirada. Esse é o fundamento da gastronomia. O que é a alta cozinha? Ela nasce do ato de fazer melhor o que toda a gente faz. É assim que deveria ser.

E acessível a todos?
Seria lindo fazer a alta cozinha para todos, mas é cara. Temos de ser realistas. Eu tenho um restaurante em São Paulo que custa 20 euros a refeição – o Dalva e Vito. Talvez a comida que eu faça no D.O.M. não seja para todos. Mas é para todos os dias? Não. Estamos a oferecer uma experiência.

Chega ao momento da carreira em que alcançou sucesso. O que vem depois?
Neste momento, o que me fascina é a questão do ativismo, da sustentabilidade. Busco cada vez mais a coerência entre o que eu falo, o que eu faço e o que eu sirvo. Sem perfeições, porque acho a perfeição uma utopia. Mas a aproximação dela é um compromisso.

 

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