Passear de autocaravana em tempo de pandemia: dia 3 entre Montalegre e Bragança

Entre Pitões e Tourém. (Fotografias: DR)
A viagem de família em autocaravana pelos parques naturais do Norte, levou-nos das muralhas de Montalegre a um exclave português em Espanha e ainda acabamos a jantar com um chef com estrela Michelin.

ENTRE AS MURALHAS E O EXCLAVE

Passamos o primeiro dia da viagem em família de autocaravana nos Arcos de Valdevez e o segundo dia em voltas e peripécias entre as serras do Gerês e da Peneda, com um esticão de estrada até Montalegre. Neste terceiro dia, arrancamos bem cedo, para uma zona verde desta vila, onde pudemos parar uma hora a tomar o nosso duche frio (e foi nestes dias que o meu filho aprendeu mais uma frase completa: “Quero um banho quente!”) e a vestir-nos. Foi aí onde, contrariando a vontade dos demais em tomar o pequeno almoço na vila, finalmente realizei a minha fantasia de lugar comum: fazer um café na autocaravana. Acabou por ser a única vez que usei a cafeteira italiana comprada de propósito, mas valeu a pena. Faltou o horizonte do promontório, mas aquela meia de leite tomada em copo de plástico na frescura da manhã soube-me maravilhosamente.

Castelo de Montalegre. (Fotografias: DR)

Não faltariam promontórios no nosso destino, com o castelo de Montalegre a surgir no nosso caminho logo a seguir. Estava quase vazia de gente a airosa vila barrosã e naquelas muralhas apenas nos cruzamos com outra família. Visita feita – ao castelo e a uma farmácia, porque o meu filho rasgou a pele do cotovelo no chão de granito – a minha filha pode seguir no seu mapa a estrada que vai até Pitões das Júnias, que eu sentia como grande falha não ter ainda visitado. Abençoada cisma que nos levou por uma estrada a cantar primavera, cheia de tapetes amarelos e com manadas de vacas a pastar, da qual fiz um vídeo de 20 segundos que foi um dos “hits” do Instagram da Evasões nessa semana.

Neste lado da Peneda-Gerês, observamos bem como é enorme, variado e sempre lindo este magnífico parque nacional do qual tão pouco conhecíamos. Chegamos a Pitões das Júnias e cruzamos a sua sucessão de campos em pleno bulício agrícola a tempo de almoçar no restaurante Dom Pedro Pitões, onde confirmara haver lugar para nós num telefonema pouco antes. Com as crianças adormecidas na caravana, os pais puderam consolar-se na esplanada de mesas de pedra com aperitivos e uma cerveja fresca, e ainda dois dedos de conversa com a moça que nos serviu.
Nesse momento, como noutros convívios, a pandemia foi assunto como outro qualquer – não se falou de medo, mas de como é preciso continuar a viver. Na sala ampla do restaurante, onde almoçamos uma deliciosa sopa camponesa, posta barrosã e ilhada, já executamos o ritual das máscaras e desinfeção das mãos com desenvoltura. Foi até agradável lavar as mãozitas do meu menino no comprido lavatório de granito e verificar que, ao meu redor, nas outras mesas, as pessoas cumpriam o mesmo ritual para depois almoçar descontraidamente.

A estrada que liga Pitões das Júnias a Tourém.

Almoço no restaurante Dom Pedro Pitões.

Percebemos no final de almoço que estávamos a cumprir o plano – finalmente! – e que podíamos dar tudo naquela belíssima estrada. Seguimos então para Tourém, a última aldeia antes da fronteira, onde a passagem da autocaravana causou um pequeno alvoroço entre algumas senhoras mais velhas que conversavam na rua. Tendo eu parado para fotografar a fachada de uma casa de onde pendiam espigas de milho como se fossem uma colcha, escutei o eco de uma zombaria: “Olha, foi fotografar o milho!”, entre gargalhadas. Eu, criada na aldeia entre matanças de porco e muito milho, a levar com aquela… toma e embrulha! Deliciada com elas, achei escusado estragar uma boa risota a falar de revistas e Instagram.

Não vimos o forno comunitário e percebemos, pela história de contrabando e resistência republicana que as placas nos indicavam, que Tourém era um lugar a voltar para uma visita bem mais prolongada. Nesta altura, já se tornara evidente que esta seria uma viagem de caminhos e paisagens, com a nossa lista de motivos para voltar a crescer a todo o momento – dali, levavamos o Ecomuseu do Barroso por conhecer; e ainda os muitos trilhos, monumentos e espaços museológicos e etnográficos locais que se cruzaram no nosso destino. Voltaremos a eles, cada um no seu tempo, e com outra preparação – agora, já sabemos onde regressar.

A albufeira do rio Salas.

Naquela tarde, porém, era ainda preciso chegar a Bragança e por isso apenas atravessamos a aldeia até chegar ao tapete turquesa da albufeira do rio Salas. Sendo certo para mim que Espanha ficava do outro lado do rio, pensei que o à-vontade com que pessoas e viaturas cruzavam a ponte se devia às exceções de circulação em certas zonas raianas sobre as quais estava informada. Pouco depois, googlei mais uma ignorância – uma parte da freguesia de Tourém constitui, juntamente com a alentejana Mourão, um dos dois exclaves portugueses no território espanhol. E nesse torrão excecional deixamos as crianças correr, entre papoilas.

 

MONTESINHO À VISTA

Com esta parte do plano a correr como previsto, finalmente!, pude cumprir a promessa antiga de visitar os irmãos Geadas. Passaram quatro anos desde que conheci o António e o Óscar, numa reportagem no início do seu projeto de criar no nordeste transmontano um acolhimento e um restaurante de referência, com comida de autor com base regional. Os inspetores do Guia Michelin voltaram ao G Pousada, na Pousada de Bragança, mais vezes do que eu. O restaurante conquistou, em 2018, a primeira estrela Michelin do interior norte de Portugal e manteve-a na última edição do guia.

Com a Pousada ainda encerrada (abriu entretanto a 1 de junho), combinamos jantar n´O Geadas, o restaurante que os pais dos irmãos – Adérito e Iracema – abriram em Bragança há mais de 40 anos, ali chegados de Vinhais. É um dos bastiões de boa comida transmontana, com ingredientes autóctones e um atendimento de clássica gentileza. Foi um serão de bons sabores a vários níveis, da conversa sobre gastronomia, vinhos e o nosso País, diante de um prato preparado pelos chefs Óscar e Iracema cuja memória perdurou no nosso paladar – e conversas – nos dias seguintes: um lombo de maronesa com cuscos de cogumelos cantarelas, os últimos da estação.

Passagem por Bragança, e pel’O Geadas, restaurante dos pais de António e Óscar Geadas.

Foi um bom desfecho para uma tarde passada a viajar da Peneda-Gerês para o Montesinho, com a maior parte do percurso em velocidade moderada pela EN 103 que, a dada altura, começa a bordejar este último Parque Natural. Foi, portanto, com essa soberba companhia na estrada que fizemos uma paragem em Vinhais. Estivera em Vinhais há quatro anos e lembrava-me vivamente de tudo, incluindo da Churrasqueira Vasco da Gama onde tão bem almocei. Foi precisamente ao passar diante da porta, depois de ter ido debalde tentar comprar pão, que o meu marido foi presenteado pela dona com um saco de cerejas… e um naco de pão caseiro. Esse pão com queijo foi o nosso lanche e essas doces cerejas fizeram-nos boa companhia na longa viagem do dia seguinte, deixando-me acumular mais uma boa memória de Vinhais.

Além do jantar n´O Geadas, esta noite foi especial porque dormimos em camas normais e tomamos os únicos duches quentes da aventura. Um convite que me chegou ao mail no dia anterior à partida levou-nos a experimentar o Bétula Studios, um alojamento de quatro bungalows de traça moderna e interessante inserção paisagística, que o casal Ana Pedrosa e António Sá (ela jornalista e ele fotógrafo) criaram, ao fim de dez anos a viver numa aldeia de Lagomar, ali no Montesinho, a poucos minutos de Bragança. Este espaço, que abriu no ano passado, é a consolidação de um projeto de vida que os fez mudar do Grande Porto para ali – e, como diz a Ana, “ganhar metade e viver o dobro”. Sendo nós uma família a viver em meio rural, foi naturalmente um prazer conhecê-los.

 

FICHAS

Dom Pedro Pitões
Largo do Toleiro, 4
Pitões das Júnias, Montalegre
Tel: 276566288/933133841
Todos os dias, das 9h às 22h
Preço médio: 15 euros

O Geadas
Rua do Loreto, Bragança
Tel: 273326002
Das 12h às 15h e das 19h às 22h. Encerra domingo ao jantar
Preço médio: 30 euros

Bétula Studios
R. N. Sra da Lapa, 27
Lagomar, Bragança
Tel.: 273326290/ 960237459
Web: fb.me/BetulaStudios
Preço (até setembro): 75 euros por pessoa (mais 10 euros por cada pessoa extra)




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