Crónica de Nuno Cardoso: A união faz-se uma garfada de cada vez

Crónica de Nuno Cardoso: A união faz-se uma garfada de cada vez
Uma cadeia de restaurantes ofereceu refeições a quem deixasse o telemóvel à entrada, dentro de numa caixa. Que não haja dúvidas. Na paradoxal era das redes sociais, se há algo com poder para nos reaproximar, é a comida.

São tempos estranhos, estes. Por mais que, por vezes, se torne difícil descrever os dias de hoje, estranho é certamente um adjetivo plausível. Senão vejamos. Vivemos nos bolsos uns dos outros. Nunca partilhámos tanto, e nunca soubemos tão pouco uns sobre os outros. A era das redes sociais e dos smartphones trouxe as suas coisas positivas, como é óbvio, mas carrega às costas o peso deste paradoxo contemporâneo, o de estarmos aparentemente mais próximos, quando estamos, na verdade, mais isolados, comunicando através de um pequeno ecrã de vidro, apoiados em ginástica de dedos polegares e dialeto de emojis.

A dinâmica já está de tal forma enraizada no dia-a-dia de todos nós – sortudos, os amigos de quatro patas – que é difícil pensar num já longínquo quotidiano sem smartphones, Instagram e companhia. E atenção, não se trata de travar nenhuma luta ou de ser anti-qualquer coisa, até porque cada um faz da sua vida, tempo e liberdade o que bem quiser, e felizmente que assim seja. Mas quando muitos se sentem, hoje, mais alienados, e reféns destes hábitos, vale a pena pensar em formas de os minimizar no espaço que ocupam diariamente. E aqui, tal como em tribunal, cada caso é um caso.

A comida tem, definitivamente, o potencial transversal para reverter esta tendência e nos reaproximar, ou não fosse este talvez o elemento que mais humanos partilham em comum, se excluirmos assuntos de anatomia. Está na altura de uma reaproximação à mesa, aumentando a partilha não só petiscos como memórias, gargalhadas e desabafos.

Recordo-me de ter lido, há cerca de um ano, uma reportagem sobre uma cadeia de 250 restaurantes britânica, que tinha decidido levar a cabo uma experiência sui generis durante um mês, sem entrar em extremismos, o que é sempre saudável. À entrada do restaurante, os comensais poderiam colocar os seus smartphones numa caixa, onde ficariam durante todo o tempo da refeição. As refeições das crianças seriam gratuitas, caso a família em questão aceitasse desfrutar de um jantar sem novas tecnologias. Explicava o «The Independent» que a decisão surge depois de uma investigação no Reino Unido ter revelado que 72% das crianças deseja que os pais passem menos tempo agarrados ao telemóvel.

Mais recentemente, não consegui encontrar uma análise pós-experiência, mas deixou-me curioso. Talvez no próximo jantar de amigos que faça em minha casa, opte pela mesma estratégia e veja como corre. Quem deixar o smartphone na caixa, tem direito a sobremesa, ou qualquer coisa do género. Pode ser o primeiro de vários, nunca se sabe. E quem fala de amigos, fala de colegas de trabalho, colegas de casa, o que for. «A beleza da comida é esse, o seu poder para quebrar barreiras», dizia em tempos o britânico Matt Preston, crítico culinário e jurado de «Masterchef Austrália», com quem tive o prazer de conversar este verão, na sua vinda a Lisboa. Até porque quanto menos tempo for passado a colocar ‘gostos’ em publicações do Instagram, mais tempo sobra para ajudar a lavar a loiça.




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