Crónica de João Mestre: queijo, vinho e o segredo da felicidade do tio Juju

Porto, 15/12/2018 - A queijaria Say Cheese. O novo espaço dedicado ao queijo e vinho na rua de Santo Ildefonso, Porto (Rui Oliveira / Global Imagens)
O queijo pede sempre vinho. O vinho pede sempre queijo. Enquanto um tiver o outro por companhia, a refeição prolonga-se até querermos. Esta é uma das maiores lições de mesa que podemos aprender com os franceses. O tio Juju é que sabia.

As filas são sempre boas como exercício de observação, em especial quando estamos fora do nosso elemento. Reparei nisto há um par de meses, enquanto esperava para entrar num museu de Paris: uma criança, não teria mais de 4 anos, queixava-se de fome. Sem grandes contemplações, a mãe tira da mala a navalha, um camembert inteiro e com uma fatia de queijo resolve a situação. Tudo pareceu natural, banal, um gesto quotidiano.

É engraçada esta ligação dos franceses ao queijo – mais do que mero conduto que se mete entre fatias de pão, o queijo é alimento, petisco, sobremesa, companhia de vinho, o que quisermos. Decerto alguém contraporá que em Portugal também se faz isso. E em parte, sim, mas nunca ao jeito dos nossos primos gauleses. Falava-me recentemente Pedro Cardoso, dono d’A Queijaria, em Lisboa, dos seus clientes franceses, que não raras vezes compram um naco de queijo para ir petiscando pela rua. Ou que, com duas ou três variedades de fromage e uma garrafa de vinho fazem o jantar, num dos muitos apartamentos turísticos que rodeiam a loja.

De novo Paris, a criança, a fatia de camembert. Ao assistir à cena, veio-me à memória o senhor Georges. O tio francês a quem chamávamos Juju.

O tio Juju não falava muito. Isto é, falar até falava, mas nunca chegou a aprender português, apesar de ter cá vivido por bons anos – na família todos entendiam a sua língua materna, e isso facilitou-lhe a vida. À mesa, as conversas corriam sobretudo em português, pelo que raramente o ouvíamos. Desconfio até que, de vez em quando, desligava o aparelho para comer em sossego.

Era um regalo ver como a sua expressão se iluminava perante uma pratada de comida. Ao cabo de uma juventude trágica, calhou-lhe a sorte grande de se casar com uma grande mulher transmontana – e de, por acréscimo, ser adotado por uma família transmontana, o mesmo é dizer «de mesa farta». Imagine-se isso para quem cresceu órfão numa França em guerra, nos tempos da ocupação alemã. «E os nazis, tio?», perguntei-lhe uma vez, à espera de uma resposta carregada de horror e ressentimento. Obtive o contrário: era aos soldados que ele mendigava pão, e estes, ao menos pelas crianças (de olhos azuis, note-se), tinham uma migalha de compaixão.

Portanto, fosse o que fosse o almoço, tudo era uma alegria para aquele homem. O copo, esse nunca podia estar vazio. Sobretudo quando, no final da refeição, se passava para o capítulo dos queijos. Se o copo estava vazio, alguém lhe perguntava se queria mais vinho. «Ah, oui! Avec le fromage», como quem diz, seria um desperdício este queijo ficar a seco. Quando se dava o caso contrário, de ter ainda o copo cheio e alguém estar de faca e queijo na mão, resposta equivalente: «Ah, oui! Avec le vin.» Uma coisa puxa a outra. Parece coisa pouca, tornou-se até piada recorrente na família, mas está aqui a chave para a busca do prazer na vida. Se continuarmos a encher o copo enquanto houver queijo no prato, e a cortar mais uma fatia do dito enquanto sobrar vinho no copo, a refeição prolonga-se. E, com ela, o prazer da companhia e das conversas – mesmo que se estas resumam ao essencial e numa língua que não compreendemos. Talvez sem se aperceber, o tio Juju descortinou o segredo da felicidade.

 

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