Crónica de João Mestre: a cigarra, a formiga e as peregrinações da minha mãe

Crónica: A cigarra, a formiga e as peregrinações da minha mãe
(Sara Matos / Global Imagens)
Por bem intencionadas que sejam, as fábulas, tal como os «bons costumes» que elas ilustram, podem guardar um perigoso subtexto. Há que questioná-las. Nomeadamente, aquelas que ensinam que a vida é só trabalho e zero diversão.

Eu bem que tento, mas nunca ganho. Tento convencer a minha mãe a viajar, a tirar partido dos anos que lhe restam, mas há sempre um pé atrás. Sei que tem vontade, mas não consegue superar aquele «O que vão as pessoas pensar?» que lhe paira na cabeça. Vem-me à memória a fábula de Ésopo, como se ela fosse uma lei da física. Como se a formiguinha nem ao fim de uma vida a amealhar pudesse divertir-se como a cigarra por um verão que fosse.

As fábulas são um terreno complicado. É rara aquela que não tenha uma lição de moral. Há sempre a personagem preguiçosa, vaidosa ou desonesta, uma montra dos defeitos que não queremos aturar nos outros, recheada de condescendência e moralismo de pacotilha. Tantas ouvimos na infância que as assimilamos como uma espécie de código de ética. Até ao momento em que decidimos questioná-las.

Ora, a formiga trabalha no verão para ter comida e aconchego no inverno. A cigarra passa o tempo a cantar e, por isso, é condenada a sofrer de frio e de fome, e ainda leva com o escárnio mesquinho de quem é incapaz de um gesto solidário. «Pois se cantaste, agora dança.» Superioridade moral, avareza, ausência de compaixão. Um desfile de defeitos mascarados de virtude. No imaginário de Ésopo, o trabalho supera todas essas faltas – já o artista, esse nem se qualifica como trabalhador.

Pelo descaramento de aproveitar o verão para fazer algo divertido, a cigarra é tida por pária, e essa é a «lição» mais perigosa que a história deixa no seu rasto. A fruição é retratada como algo impróprio de gente de bem. A ganância da formiga facilmente se relativiza como um excesso do autor para colorir a situação. Já o pecado da diversão, esse passa quase despercebido, e vai-se entranhando.

Ouvi esta história no infantário, na primária, na catequese, em casa dos meus pais. Lição central, «trabalha que nada te faltará», com o subtexto implícito, «nem penses em divertir-te». Pois foi isso que os meus pais fizeram. Trabalharam. Para que nada faltasse aos filhos, eu sei. Mas pouco se divertiram, nunca tiraram férias e passeios era coisa que se fazia sobretudo com o propósito de ir visitar família. Eles não se concediam o simples prazer de fazer uma pausa, havia sempre trabalho. Até ao dia em que, de tanto trabalhar, o meu pai caiu para o lado. E a minha mãe, bom, é o que já contei. Mas, afinal, há um «mas».

Os assuntos da igreja são coisa que me aborrece, portanto nunca liguei muito às peregrinações de que ela por vezes fala. Até que um dia lhe perguntei o que fazem ao certo nessas peregrinações. Na verdade, são passeios – um grupo de paroquianos que se enfia num autocarro e vai a sítios. Passeiam, comem, visitam museus, monumentos, jardins, vêm coisas bonitas, aproveitam a vida. No roteiro, claro, há sempre um santuário ou algo que o valha, a justificar o propósito religioso da viagem, mas, para mim, é só pretexto. Pouco me importa. Valham os pretextos. São eles que permitem furar esta lógica perniciosa de a fruição ser pecado. Estaríamos bem condenados, nós as cigarras, se o fosse.

 

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