A revolução da cozinha vegetariana moderna portuguesa

Fotografia DR
Estrelas Michelin, cozinha de autor, menus de degustação. Há uma nova vaga de cozinha vegetariana, baseada no produto, na técnica e na ideia de prazer à mesa – um mundo de possibilidades que começam agora a ser exploradas, para contentamento dos vegetarianos, de quem que apenas gosta de variar na alimentação e daqueles que ainda não descobriram que adoram vegetais. Há uma discreta revolução em curso – e um manifesto informal de cozinha vegetariana moderna portuguesa.

Não é carne, nem peixe. A expressão é pejorativa, e aponta sempre para a falta de alguma coisa. Uma certa indecisão, inépcia ou amorfismo que pode ser muita coisa, mas nunca nada de bom. Quando aplicado no sentido literal à comida vegetariana, deixa logo à vista uma certa postura perante o assunto: comer vegetariano é visto como comer algo a menos. Quando na verdade pode ser o exato oposto.

«Todos os criativos são bons quando são postas regras», diz João Sá, defendendo que o trabalho sem proteína animal não tem de ser visto como uma limitação. (Nuno Pinto Fernandes/GI)

«Para mim, como cozinheiro, é uma lufada de ar fresco», diz Nuno Castro, que tanto tem à sua responsabilidade o restaurante de cozinha vegetariana moderna Fava Tonka como a sua contraparte omnívora Esquina do Avesso, na porta ao lado.

Ao cabo de oito meses a pensar vegetariano, uma constatação: «Um cozinheiro que domine o vegetarianismo, quando volta a trabalhar numa cozinha generalista, brinca.» O céu – ou, neste caso, a terra – é o limite.

 

 

 

I. A BOA COMIDA DISPENSA RÓTULOS
Seja por más experiências, por desconhecimento ou por simples preconceito, não é rara uma certa

Para evitar rótulos, João Alves, chama ao Arkhe «um local dedicado à cozinha à base de vegetais».

aversão à ideia de comer um prato onde falte carne e peixe. Talvez por esse motivo, João Ricardo Alves, quando abriu o seu restaurante, quis manter algum mistério.

«Não quero ter rótulos, se eu anuncio que é vegetariano metade das pessoas já nos vê de outra forma.» Daí que o Arkhe se apresente antes como «um local dedicado à cozinha à base de vegetais».

 

Jerónimo Pinto de Abreu tem factos para corroborar essa ideia: «Noutros restaurantes em que trabalhei, evitava ter secção vegetariana na carta, para não espantar as pessoas», conta o chef e coproprietário do Lupin. «Se punha esses pratos espaçados, na lista de entradas, vendiam-se muito mais.»

 

 

 

II. O PRODUTO É REI

Nuno, João e Jerónimo fazem parte de uma nova geração de chefs, representam um olhar fresco sobre a cozinha de base vegetal. Mais do que adaptar os pratos do receituário tradicional em versões veggie-friendly ou de simplesmente subtrair e ajustar naqueles que levariam proteína animal, eles trazem para a mesa uma forma de pensar o prato tomando o produto como ponto de partida. As possibilidades, sob esse ângulo, são imensas. Pegue-se no aipo, por exemplo.

Mil-folhas de aipo com ragoût de cereais, no Erva (Lisboa)

Mil-folhas de aipo com ragoût de cereais, no Erva (Lisboa)

Rui Paula, na Casa de Chá da Boa Nova, casa-o com avelã, cada um dos elementos declinado em três texturas e nada mais. Ljubomir Stanisic, na nova encarnação do 100 Maneiras, leva-o à mesa fumado e salgado, num prato faça-você-mesmo com tortilhas de milho, cebola frita, flores e um dip de natas, rábano e trufa. E no restaurante Erva, Artur Gomes serve-o fatiado fino, salteado em manteiga, num guloso mil-folhas com ragoût de cereais. E, convenhamos, é só um aipo – «só».

Na cozinha vegetariana moderna, a repetição é uma baixa probabilidade. Se no maneio de carnes, mariscos e peixes há um mapa de estradas bem definido do que se deve e não deve fazer, «é respeitar o produto, não estragá-lo», resume João Ricardo Alves, «nos vegetais há todo um mundo a explorar». «Temos um ingrediente principal, mas não conseguimos ir pelo “o que vamos pôr a acompanhar isto?”», explica Catarina Correia, chef executiva e braço direito de Rui Paula na Casa de Chá da Boa Nova. «É mais “Como posso trabalhar este produto de diferentes maneiras, diferentes texturas, diferentes sabores?”.» E aí, para felicidade do público – vegetariano ou não – impera a máxima «Cada cabeça sua sentença». João Sá, do Sála, põe as coisas em perspetiva: «Todos os criativos são bons quando são postas regras, a limitação está nas nossas cabeças.»

 

III. REAPRENDER OS VEGETAIS

«O processo criativo nos vegetais é exatamente o mesmo que para a carne e para o peixe.» É este o ponto de partida de Artur Gomes, no Erva. Ao contrário do que o nome sugere, este é um restaurante omnívoro, e é nesse sentido de equilíbrio e variedade alimentar que aponta a cozinha de Artur. «Temos de dar a mesma importância aos três “mundos”.» Sublinhe-se que o chef de 26 anos passou uma temporada no Noma, de René Redzepi, porta-estandarte da cozinha de vanguarda e do primado do respeito pelo produto, em Copenhaga. Não é o único a trazer mundo na bagagem – João Ricardo Alves, no percurso de se tornar cozinheiro, esteve dois anos no Joia, em Milão, o primeiro restaurante vegetariano a ostentar uma estrela Michelin. Talvez seja essa frescura de perspetiva que está a ajudar a mudar a perceção da cozinha vegetariana, e a ajudar a derrubar barreiras.

O Feitoria, de João Rodrigues, foi um dos primeiros restaurantes de alta cozinha em Portugal a introduzir um menu vegetariano fixo. (Fabrice Demoulin)

«É importante que os chefs que saem para o estrangeiro retornem em algum momento com esse conhecimento», sublinha João Rodrigues, ele que tem um menu de degustação vegetariano em vigor no seu Feitoria desde 2016, o que faz dele um pioneiro, ainda que assuma alguma dificuldade inicial em sair da estrutura tradicional de pensamento da proteína como casa de partida. A questão, acredita, é cultural: «Estamos habituados desde pequeninos a comer proteína com proteína. A maioria olha para os vegetais como um complemento, não um elemento principal.» No entanto, nota, «as coisas vão mudando, lentamente». O processo de criação, esse acabou por se tornar mais natural, com a experiência acumulada. «Já temos uma base criada, um histórico do que correu e não correu bem.»

Miso de caldo verde: tal como no menu principal, o menu vegetariano do Midori segue a filosofia de «japonês de alma portuguesa». (Martin James)

«Nunca aprendemos a comer legumes», atalha Pedro Almeida, apontando também para a questão cultural. «É complicado que as pessoas se apercebam que existe potencial na cozinha vegetariana, e não joga a favor que as opções da maior parte dos sítios são horrendas.» Para o chef do Midori, isto desagua num problema de oferta e procura: «Não há oferta porque nunca apendemos a comer, e nunca aprendemos a comer porque não há oferta.»

De sua parte, ele que se assume fã de legumes e afins, começou por introduzir alguns pratos vegetarianos como opção num dos menus de degustação, o que pôs à vista um inesperado interesse do público omnívoro: «Cinquenta por cento dos clientes pedem o prato vegetariano quando chegam a essa opção, as pessoas estão abertas a provar». No final do verão passado, elevou a fasquia, com um menu de sete momentos em que o desfile de pratos foi pensado para acompanhar o menu principal, sem lhe ficar atrás em nada.

 

 

IV. A EXPERIÊNCIA À MESA É PARA TODOS

Além do Feitoria e do Midori, na galáxia Michelin há ainda outro menu vegetariano digno de nota. Na Casa de Chá da Boa Nova, onde tem «em cena» um épico de 21 momentos a que chamou «Por mares nunca de antes navegados», Rui Paula criou uma equivalência, momento a momento, em versão vegetariana. Com o cuidado de seguir o mesmo crescendo de intensidade e de nunca repetir o elemento central. Isto sem esquecer a textura, «uma das coisas mais importantes da comida» para o chef portuense: «Se eu tiver só um puré de aipo, torna-se fastidioso, mas se ao puré juntar aipo assado no forno e um picle de aipo, dá movimento ao prato e é bom – para a boca, para os sentidos, para a apresentação.»

A mesma lógica de dinâmica passo-a-passo com o menu principal está presente na versão revista e aumentada do 100 Maneiras que Ljubomir Stanisic abriu ao lado da sua morada original no Bairro Alto. «Pensei o menu para ser esteticamente igual ao normal, para a pessoa que o come ter a mesma criatividade», explica o chef, que tanto num menu como no outro revisita 25 anos de cozinha em 17 escalas. «O menu vegetariano deixou de ser uma bengala, estou muito orgulhoso de servir no meu restaurante um vegetariano ao mesmo nível que um carnívoro.»

Legumes cozidos e crus, algas para ligar e dar mineralidade, gema de ovo curada e a frescura picante do kizami wasabi – o tártaro de vegetais do Kanazawa.

Também Paulo Morais, quando decidiu implementar uma sequência vegetariana no cerimonial Kanazawa, que comanda há um par de anos, fê-la coincidir com o menu principal em vigor. Mesmo que isso implique mudá-lo todos os meses, por culpa da inquietude do chef, que assume, «Não gosto de rotina, de estar sempre a fazer os mesmos pratos». Portanto, se serve uma sopa, um cru, um grelhado, o vegetariano terá o mesmo método de confeção. «É mais fácil seguir a cadência», admite. Se o menu principal segue o estilo kaiseki, com os devidos ajustes, a contraparte vegetariana apoia-se no shojin ryori, a alta-cozinha de templo budista – porém, mais apostada na experiência do que em ser comida-para-meditação. «É uma adaptação, desvirtuando o mínimo possível, para criar uma cozinha com mais texturas, mais sabores, técnicas diferentes.» Ou, por outras palavras, para dar prazer.

 

V. UM PRAZER E NÃO UM SACRIFÍCIO

Pergunte-se a qualquer um destes chefs, e o assunto virá à baila: prazer à mesa. É disso que trata o trabalho de qualquer um deles. Sejam eles vegetarianos, flexíveis ou carnívoros assumidos – e embora a questão da sustentabilidade e da redução do consumo humano de carne e peixe esteja sempre em cima da mesa –, em nenhum destes restaurantes paira qualquer espécie de mensagem moralista ou doutrinadora. «Dizer às pessoas o que está certo e errado não leva a lado nenhum», defende João Ricardo Alves, ele que segue um regime à base de vegetais, com a ocasional exceção para o peixe.

No Fava Tonka, Nuno Castro já perdeu a conta às vezes que ouviu «se todos os vegetarianos fossem assim, eu já comia há mais tempo». (Pedro Granadeiro/GI)

«As pessoas não querem confronto. A mensagem é vir provar boa comida, bom vinho», continua, fazendo questão de não tornar o seu restaurante campo de batalha: «É o lugar onde as pessoas vêm no final do dia, um sítio de reunião de família, para passar um bom tempo, levar uma boa memória.» O certo é que, contas suas, dois terços da clientela não é vegetariana. Ricardo Rodrigues, coproprietário do Fava Tonka, estima uma proporção semelhante. E Nuno Castro já perdeu a conta às vezes que ouviu, em jeito de despedida, «Se todos os vegetarianos fossem assim, eu já comia há mais tempo». Talvez seja este o ponto de partida: desmontando a ideia de ser um sacrifício, a causa poderá, de caminho, ir ganhando adeptos.

 

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