Crónica de Dora Mota: uma redoma de paz na Baixa do Porto

Opinião de Dora Mota: uma redoma de paz na Baixa do Porto
A Capela das Almas é tida como o edifício mais fotografado do Porto. (Fotografia de Igor Martins/GI)
Apesar de ali ter passado tantas vezes, foi a primeira vez que entrei na Capela das Almas, na Rua de Santa Catarina, no Porto. O contraste entre a agitação de fora e a tranquilidade lá dentro impressiona.

Costuma-se dizer que a Capela das Almas é o edifício mais fotografado do Porto. E assim parece ser, considerando que está sempre alguém, a qualquer hora do dia, a tirar o retrato àquele retângulo forrado a azulejos azuis e brancos, numa das esquinas mais movimentadas da cidade. Por essa airosa capelinha entre as ruas de Santa Catarina e de Fernandes Tomás, junto à estação de metro do Bolhão, passam constantemente pessoas, carros, autocarros. E eu, que um destes dias parei diante dela como os turistas e tirei uma fotografia, inspirada pela poética luz matinal. Foi quando me pareceu que entre tanta gente que a fotografava, poucos eram aqueles que realmente olhavam para ela.

E então, olhei. Vi de cima a baixo, de um lado ao outro, os episódios da vida de Santa Catarina e de São Francisco de Assis em pinturas de Eduardo Leite, nos azulejos feitos na Fábrica de Cerâmica Viúva Lamego, em Lisboa. São realmente bonitos e estavam encantadores naquela manhã de luz poética a entornar brilhos no vidrado do azulejo. Reparei que naquele bocado em que me dediquei a observá-los, fui a única pessoa a rodear a capela
para a ver melhor. E tantas ali pararam a fotografá-la, olhando-a uns segundos, ou entrando e saindo rapidamente.

Os turistas abrem e fecham constantemente a porta, olhando como um periscópio para o interior durante alguns segundos.

Ao vê-las entrar e sair, ocorreu-me que em cerca de 20 anos de convívio íntimo com a Rua de Fernandes Tomás – onde trabalhei durante seis anos – nunca tinha entrado na Capela das Almas. E entrei. Decorria uma missa, rezada por um padre de voz tranquila para uma audiência que quase enchia os bancosde madeira da pequena nave. O contraste entre aquele interior onde a voz do padre soava como uma branda maré colhida pela atenção tranquila dos crentes e o exterior ruidoso e apressado da rua abalou-me.

A Capela das Almas é tida como o edifício mais fotografado do Porto. (Fotografia de Igor Martins/GI)

Era preciso escolher um dos lados e eu escolhi a maré branda, recolhendo-me para onde pudesse observar sem perturbaro culto, por um lado, nem confundir-me com os turistas que abriam constantemente a porta para olhar dois segundos a toda a volta, qual periscópio de um submarino, para logo voltar a batê-la. Não terei conseguido totalmente entranhar-me na paz do interior porque me distraía o bater das portas. “Oh, c´est la messe!”. “Oh, it´s the mass!”, exclamavam e depois – não todos, mas quase todos – soltavam a porta deixando-a bater sozinha, numa atitude que me pareceu intoleravelmente desrespeitosa.

Os crentes pareciam nem dar por esse bater constante, imersos na sua concentração. Fiquei ali até ao fim da celebração (há oito missas por dia, e seis ao fim de semana, na Capela das Almas), a apreciar aquele interior modesto, porém delicado. Não há grandiosidade de talha dourada, mas alguns pormenores muito belos nos rendilhados de gesso pintado, nas madeiras e no órgão de tubos do coro. É um lugar balsâmico no coração de uma cidade agitada e parece-me que terei vontade de ali entrar mais vezes. Não faltará quem, depois de ler isto, afirme prontamente saber de outras redomas pacificadoras em pleno bulício. Acredito que sejam muitos. O que aqui narro não é contraponto. De todos os lugares de paz do Porto que existem, coube-me a mim, hoje, falar do interior da Capela das Almas.

 

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