Serra da Estrela: um roteiro pelo aconchego do burel

Serra da Estrela: um roteiro pelo aconchego do burel
(Fotografia: Artur Machado/GI)
Antes apenas conhecida dos pastores, as Penhas Douradas só começaram a ser habitadas em finais do século XIX. Os viajantes de hoje podem percorrer a pé este local histórico na Serra da Estrela, guiados tanto pela história da ciência como da cultura pastorícia.

Quem há 100 anos passeasse pelas Penhas Douradas teria uma visão muito diferente da de quem hoje por lá faz turismo. O chalés que se espalham por esta localidade, a uma respeitosa altitude de 1300 metros, vêm dos primeiros anos do século XX, mas uma parte da vegetação – como o pinheiro do Oregon, o pinheiro-silvestre e as faias – só a partir de 1920 foi aqui colocada, para evitar as avalanchas que atacavam Manteigas.

Antes, esta zona era mais rochosa, com vegetação mais rasteira, de zimbro, urze, sargaço, o cervunal (a relva da serra). Quem o diz é Luís Cunhal, guia de montanha e assistente de direção da Casa das Penhas Douradas, que normalmente conduz os turistas hospedados nesta e na Casa de São Lourenço pelos trilhos pedestres da serra.

A neve das Penhas Douradas. (Artur Machado/Gl)

O trilho da Lagoa do Viriato. (Artur Machado/GI)

Destino tanto de amantes de neve como de quem gosta de caminhadas em qualquer época do ano, esta zona era praticamente desconhecida do resto de Portugal nos fins do século XIX, por altura das primeiras expedições científicas à serra. Mas rapidamente se tornou em local privilegiado, primeiro para quem se queria tratar da tuberculose, doença cuja cura eficaz só aparece em meados do século XX, depois para quem via na mais alta serra portuguesa, vislumbres dos Alpes ou dos Pirenéus.

Diferentes foram as razões que levaram João e Isabel a apaixonarem-se pela montanha e ali decidiram fazer parte da sua vida. Atuais proprietários dos dois alojamentos referidos, descobriram a serra a pé, em diversas caminhadas.

Numa das vezes, lembra João, entraram na casa onde hoje está o seu primeiro hotel. “Na altura, chamava-se Caverna do Viriato, era hospedaria e restaurante e tinha sido vendido para ali se construir um hotel”. João e Isabel gostavam tanto da serra que assinaram um jornal para ficarem a par das casas que estavam à venda. Ora acontece que o projeto de se construir um hotel ali foi descartado e a casa ficou novamente à venda. Então, compraram-na, renovaram-na e, em 2006, abriram-na como CASA DAS PENHAS DOURADAS. A decoração é ligada à montanha e à neve. Há uma coleção de esquis e alguns documentos, entre eles muitas fotografias, que dão a conhecer a primeira expedição científica à serra da Estrela.

A paixão pela montanha, pelas suas histórias e pessoas, continuou depois da abertura. Por isso, o ano passado inauguraram mais um hotel, desta vez o primeiro cinco estrelas na Serra, a CASA DE SÃO LOURENÇO – BUREL PANORAMA HOTEL. Esta foi, nos anos 40, uma das primeiros pousadas de Portugal, rede idealizada por António Ferro, diretor do Secretariado de Propaganda Nacional. Inaugurou depois da II Guerra Mundial, em 1948. A ideia, explica João Tomás, “era inovadora em relação aos conceitos de hotelaria da época. Eram hotéis boutiques, de charme, com a autenticidade portuguesa. Queria mostrar-se um país acolhedor, através de hotéis que não parecessem hotéis, mas sim casas de férias”. O projeto original de arquitetura foi de Rogério de Azevedo; por dentro, a decoração ficou a cargo da muito talentosa designer e artista Maria Keil. Na recuperação para a nova pousada, manteve-se parte dessa história. Apesar de ao longo o tempo ter havido acréscimos mais ou menos felizes, João e Isabel e os ateliers P-06 e Site Specific Arquitectura quiserem recuperar o que de melhor tinha a casa.

Vale do Zêzere. (Artur Machado/Gl)

Manteve-se a confortável lareira na sala que é agora parte do restaurante, e tapou-se o terraço, mas sem tirar as vista para o VALE DO RIO ZÊZERE. De cima a baixo, as janelas de vidro mostram o vale glaciar e a vila de Manteigas. As estrelas, os cardos e as lobas cravados na madeira, que Maria Keil criou inspirada nos desenhos que os pastores faziam nos cajados, encontram-se em algum do mobiliário também desenhado por ela e noutros espaços, como o mural onde se conta a história da casa através de vários documentos, desenhos e literatura. Além, disso, há mesmo alguns quartos originais de Keil que foram preservados. Como unidade de luxo que é, não podia faltar SPA e serviços de bem-estar.

 

Tudo unido pelo fio do burel

O burel, tecido de lã usado tradicionalmente pelos pastores da serra da Estrela para as suas capas, está presente em todos os cantos da casa. No restaurante da Casa de São Lourenço, penduradas no teto estão 5 mil estrelas produzidas neste material. Nos 17 quartos, nas quatro suítes e nas áreas comuns, este tecido aparece de várias formas, paredes revestidas, tapetes, cortinas e mesmo os chinelos do quarto (que são oferta da casa).

É impossível separar este material altamente resistente à água e ao fogo da história que João e Isabel foram criando na Serra. Depois de terem aberto o seu primeiro hotel, quiseram ajudar a recuperar a indústria da lã, que ia ficando cada vez mais atrofiada com o encerramento de várias fábricas. O casal interveio, comprando a Fábrica de Lanifícios Império que tinha falido em 2010. Foram buscar alguns dos antigos trabalhadores, os “fiéis depositários do conhecimento”, como lhes chama João.

Hoje, na fábrica onde se produz e nas lojas onde se vende o burel e as mantas trabalham mais de 30 pessoas. E com esta recuperação veio também a inovação. Antes, este tecido feito com a lã das ovelhas bordaleiras, as mesmas que dão o leite para o queijo da serra, não tinha uso generalizado e havia apenas nas cores branco, castanho e surrobeco. Hoje, o burel e de todas as cores e serve para tudo, de casacos a sapatos, de carteiras a candeeiros. As ovelhas bordaleiras são mesmo dali, do Campo do Romão, criadas no ar puro da serra. A BUREL FACTORY, em Manteigas, está aberta a visitas guiadas.

 

De volta aos trilhos

A melhor forma de conhecer a serra é mesmo a pé, num dia de sol, mesmo com frio. Os hotéis de João e Isabel disponibilizam vários percursos pedestres, desenhados para serem feitos em autonomia e para darem a conhecer a história e a estética do cimo da montanha. Quase todos eles passam pela Casa da Fraga, onde viveu o primeiro habitante das Penhas Douradas, ainda no século XIX. Alfredo César Henriques mudou-se para a serra a mando do seu médico, o famoso Sousa Martins, para se curar da tuberculose. A ideia de que a altitude poderia ajudar a tratar a doença estava a desenvolver-se em países como a Suíça e o especialista português foi seu defensor. Isso investigou aquando da primeira expedição científica à serra da Estrela, em 1881, organizada pela Sociedade de Geografia de Lisboa. Foi também nessa altura instalado o Observatório meteorológico, que também se vê durante os passeios. Da CASA DA FRAGA hoje só restam, praticamente, as rochas que serviam como paredes.

Casa da Fraga. (Artur Machado/GI)

Relativamente perto da antiga casa está o miradouro Fragão do Corvo, onde vale a pena passar algum tempo contemplando a vasta paisagem. Também perto está o antigo chalé do republicano Afonso Costa, uma bonita casa de riscas vermelhas e brancas, que testemunha a época em que várias famílias se começar ali a instalar, principalmente para passar férias, mas também para usar o ares da serra como cura da tuberculose, o que se percebe pela estética das casas-sanatório, com as galerias de cura, grandes varandas viradas a sul, que permitiam contemplar a imensidão da serra em sossego, ao abrigo do vento.

 

Comer bem e com diversidade

O chef consultor dos restaurantes da “família” Burel é Luís Baena, mas quem está todos os dias a liderar a cozinha é Manuel Figueira. Em ambos os restaurantes (Casa das Penhas Douradas e Casa de São Lourenço), abertos a toda a gente, a carta é uma feliz mistura entre o tradicional e o moderno. Croquetes de cozidos à Beirã, sopa de castanhas, ensopado de borrego, carne de alguidar com arroz de míscaros e paiola, empadão de javali, cabrito e bacalhau gratinado são algumas das sugestões da carta nesta altura do ano. Arroz de míscaros com croquetes de alho francês ou gratinado de couve-flor com tomate seco são algumas das opções vegetarianas. Aos sábados há música ao vivo durante o jantar.

A fábrica do Burel

As visitas à Burel Factory são guiadas por José Bento, que se mudou de Lisboa para Manteigas onde abraçou este projeto e, como o próprio diz, “aprendeu a viver mais devagar”. Já conhece bem os cantos à casa. As visitas, realizadas sempre às 11 horas, percorrem a fábrica em funcionamento, onde estão desde antigos teares a máquinas fiadeiras dos inícios do século XX e outras ainda mais antigas. Antigos cadernos com os “segredos” do debuxo, os padrões das mantas são outra das curiosidades. A visita acaba na sala de controlo de qualidade e na loja pode comprar-se alguns os produtos ali produzidos, desde as mantas a almofadas e artigos de decoração.

Algo está a fazer com que o sistema não consiga mostrar a ficha ténica desejada. Pedimos desculpa pelo incómodo.




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