Alijó, no Alto Douro Vinhateiro: cenários de filme com pessoas reais

O Miradouro do Ujo, com vista para o Vale do Tua. (Fotografia de Igor Martins/GI)
Em Alijó, no Alto Douro Vinhateiro, não faltam paisagens e histórias surpreendentes - para conhecer a bordo de um carro clássico ou de jipe, entre as vinhas. Pão, moscatel e outros sabores tradicionais cruzam-se com obras de arquitetura e arte contemporâneas, e também isso há de merecer um brinde.

Favaios é conhecida pelo pão e pelo moscatel, que logo se dá a beber aos forasteiros. Ainda mal chegámos a essa aldeia vinhateira do Douro, no concelho de Alijó, e já temos provas de tal generosidade na PADARIA CENTRAL, ou melhor, na Padaria da Rosália. Ela ali anda, a fazer o tradicional pão de quatro cantos quase de olhos fechados, os gestos já mecanizados e certeiros – é ofício que exerce desde menina, ainda a farinha tinha de ser peneirada à mão. O pão continua a ser cozido em fornos a lenha, revestidos de tijolo burro, o que marca a diferença no resultado final, defende Rosália. Isso “e o carinho que a gente põe”.

Rosália Rocha Araújo de volta do pão.
(Fotografia de Igor Martins/GI)

Rosália Rocha Araújo, de 72 anos, dedicou-se ao fabrico de pão quando saiu da escola, era criança. “Vim logo amassar sacas”, lembra. “A minha vida foi toda esta, menos cinco anos em que estive em casa de Salazar.” Aqui, faz-se pausa na história do pão, que ela tem outra para contar – já registada, inclusive, em livro (ler abaixo). Desse tempo que passou a servir António de Oliveira Salazar, em plena ditadura do Estado Novo, Rosália guarda, além de memórias vívidas, fotografias de personalidades e momentos históricos, como o funeral do ex-presidente do Conselho. “Quando ele morreu, vim para cá outra vez. Tinha 19 anos”, conta a padeira, que depois se casou e teve três filhos, um dos quais, Adelino Soares, a acompanha no negócio familiar.

Despedimo-nos de ambos à medida que seguimos viagem por Favaios, num carro clássico branco e descapotável. Trata-se de um Renault Caravelle vindo de Inglaterra, por isso tem o volante à direita. Passear nele (e noutros do género) por cenários que mais parecem de filme é uma das sugestões da empresa DOURO VINTAGE TOURS, de Bruno Simões. O objetivo, explica, é mostrar a região de forma próxima e genuína, recorrendo a gente ali nascida e criada; proporcionar aos visitantes experiências ligadas à enologia e à gastronomia, levá-los a andar de comboio, de iate, ou por estradas com paisagens deslumbrantes. Isto com o apoio de uma rede de parceiros, e fugindo ao turismo de massas.

Para Bruno, o foco está nas pessoas, mais do que nos adereços. “Não quero que me procurem porque tenho um carro bonito, mas porque tenho uma experiência memorável”. Acresce que, nos seus passeios privados, com guias locais, tudo é passível de ser adaptado, ajustado, “como um fato à medida”. Por exemplo, um cliente pode interessar-se mais por fotografia do que por vinho, ou querer pôr as mãos no barro preto de Bisalhães em vez de viajar num automóvel instagramável, como este em que nos encontramos, agora a subir ao miradouro de Santa Bárbara. É que no topo do monte há uma capela, um baloiço na árvore e vista para o planalto de Favaios.

O Renault Caravelle, aqui ao serviço da Douro Vintage Tours.
(Fotografia de Igor Martins/GI)

O miradouro de Santa Bárbara, de onde se vê o planalto de Favaios.
(Fotografia de Igor Martins/GI)


Dos vinhos à arte, passando pelo todo-o-terreno

Depois do pão, o vinho. A próxima paragem é na ADEGA QUANTA TERRA, nascida numa antiga destilaria da Casa do Douro. O edifício que acolhe este projeto dos enólogos Celso Pereira e Jorge Alves estava bastante degradado, tendo sido alvo de requalificação, com a assinatura do arquiteto Carlos Santelmo. Mantiveram-se a cor tradicional, a traça e as imponentes cubas em cimento – quatro, numeradas -, com capacidade para 25 mil litros de aguardente já destilada e revestidas por ladrilhos de vidro (os que apresentam marcas brancas são os originais).

Os enólogos Celso Pereira e Jorge Alves.
(Fotografia de Igor Martins/GI)

Hoje, aquele espaço funciona como centro de visitas e promove o encontro entre vinho e cultura. Aliás, a Adega Quanta Terra foi distinguida, nos prémios Best of Wine Tourism 2023, como um dos 11 melhores projetos de enoturismo a nível mundial, na categoria de Arte e Cultura. Essa veia criativa está bem saliente na visita guiada ao edifício, que já acolheu peças de Joana Vasconcelos e agora tem patente a exposição “Cor no Douro”, de Leni van Lopik (ler caixa). As suas obras estão por todo o lado, do interior das cubas à antiga casa do caseiro, ainda com marcas de fuligem da chaminé. A Quanta Terra também recebe concertos e outras iniciativas, e tem um novo bar de vinhos, com rótulos da marca servidos a copo e petiscos regionais.

As peças de Leni van Lopik também estão expostas no interior das cubas.
(Fotografia de Igor Martins/GI)

Se apetecer uma refeição mais composta, um dos caminhos a tomar é o que conduz à TABERNA A FONTE, em Santa Eugénia. Marisa Avidago teve outras profissões, chegou a trabalhar no Porto, mas não apreciou a vida citadina e trocou as filas de trânsito pelo sossego da aldeia natal, onde abriu este restaurante. Já leva uma década de existência, fiel aos sabores tradicionais.

“Sempre gostei de cozinhar. Perco-me em frente àquele fogão”, atira Marisa, sorridente, com a mesa já recheada de presunto e alheira, a abrir caminho para a posta com arroz de grelos servido em pote de ferro. Outras especialidades são o bacalhau grelhado na brasa com batata a murro, e, ao domingo, o cabrito assado em forno a lenha. Também se diverte a inventar receitas, incluindo de sobremesas – é o caso da Pinga-Amor, que leva leite condensado e Peta Zetas, e do mais recente doce de ovos com gelado e flor de sal.

Quem anda pelo Douro não há de afastar-se, pelo menos durante muito tempo, nem dos vinhos, nem das paisagens de postal. De Santa Eugénia, partimos rumo ao MIRADOURO DO UJO, entre São Mamede de Ribatua e Safres. Subindo os degraus dessa infraestrutura em ferro, debruçada sobre o Vale do Tua, a ideia de tempo esbate-se. Ficamos só a admirar aquela singular mistura de verdes e azuis – e na mão pode estar novamente um copo, que ao lado há zona de merendas.

A vista do Miradouro do Ujo.
(Fotografia de Igor Martins/GI)

Refrescados, retomamos a viagem à boleia da GRAPELAND, que nos leva a passear de jipe off-road, entre vinhas. Esta empresa de animação turística, com programas personalizáveis, foi fundada por Paulo Magalhães e Raffaele Batista, aliando as paixões pelo Douro e pelo todo-o-terreno. Através de caminhadas, passeios de bicicleta elétrica, moto-quatro ou caiaque, entre outras propostas, dá-se a conhecer o território com o à-vontade próprio dos locais – trabalhando, inclusive, com outros parceiros, de que é exemplo a Douro Vintage Tours.

Todos os serviços são complementares e podem incluir piqueniques em ambientes idílicos, toalha estendida para o pão e a bôla de carne de Favaios, entre outros mimos – adaptáveis a diferentes regimes alimentares. Provas de vinhos e visitas a adegas de pequena dimensão também constituem possibilidades, e mesmo experiências de vindima. Paulo deixa, no entanto, um alerta: “Tudo o que fazemos é em modo relaxamento, contemplação, não desporto. O objetivo não é fazer exercício físico, é desfrutar, ouvir os pássaros, tocar nas plantas, conhecer as pessoas e o que se faz aqui”.

 


Sabores de sempre, camas de agora

E o que se faz no centro de Alijó? Desde logo, reservar mesa no CÊPA TORTA, que foi o primeiro restaurante de Rui Paula, até passar para as mãos do casal António e Elisabete Ribeiro. Graciete, que trabalhou com aquele chef estrelado, dirige agora a cozinha, de onde saem clássicos como a telha de fumeiro (alheira, salpicão de barbadela e linguiça); o medalhão de lombo de vitela grelhado com queijo da Serra, arroz de cogumelos e legumes; ou a bochecha de porco bísaro acompanhada por açorda de cogumelos.

Cabrito assado também vai havendo, ao domingo, e por encomenda, à semelhança dos milhos, mais invernais, outrora “um prato de pobres, como a açorda”, explica António Ribeiro. Às propostas habituais juntaram-se, entretanto, algumas novidades de verão, como o pato confitado com puré de trufa e o filete de robalo com aveludado de brócolos. A carta engloba ainda opções vegetarianas e doces como o pudim de azeite com gelado do mesmo. “A nossa praia é a cozinha tradicional, com um toque de modernidade no empratamento”, resume o também vitivinicultor, que tem em lista mais de uma centena de vinhos, quase todos da região.

O medalhão de lombo de vitela com queijo da Serra derretido, arroz de cogumelos e legumes.
(Fotografia de Igor Martins/GI)

Chegada a hora de recolher ao ninho, o destino é de novo Favaios, mais precisamente a QUINTA DA FAÍSCA. É lá que se erguem quatro novas casas de tipologia T2, projetadas pelo arquiteto Carlos Castanheira, que transmitem uma sensação de conforto desde logo pelo recurso a matérias-primas naturais. Há madeira a cobrir paredes e tetos, a que se junta o xisto, varandas que oferecem vista privilegiada sobre as vinhas em redor e, no exterior, um tanque para refrescar o corpo. Vemos tudo isso com maior clareza de manhã, depois de acordarmos com cantigas de aves e pão fresco para o pequeno-almoço.

As quatro casas, com o traço do arquiteto Carlos Castanheira.
(Fotografia de Igor Martins/GI)

No escritório, que guarda uma coleção privada de tratores em miniatura, Manuela Pires salta da secretária para nos mostrar a propriedade. É ela quem explica a história da quinta desde 1946, quando tinha apenas um pavilhão para produzir vinho do Porto. Há uns bons anos, mudou de donos e começou a crescer noutras direções, até aos moldes atuais. O pavilhão original foi remodelado, surgiram outras construções, passou a produzir vinhos tranquilos e moscatéis fortificados. São cerca de 17 hectares de vinhas, e em setembro devem arrancar as vindimas, com auxílio da icónica carrinha Bedford. O nome, esse, é fácil de entender: o que está à volta corresponde ao lugar da Faísca.

Atualmente, a quinta pertence a dois irmãos: Gonçalo e Tiago Sousa Lopes. O primeiro ocupa-se da produção de vinho, comercializado pela empresa Secret Spot Wines, enquanto Tiago trata da vertente turística. E se há quem se dirija ali para uma visita com prova de vinhos, também há quem prolongue a estadia, tão refrescante é a oferta de alojamento. “Queríamos um sítio para estar, não só para dormir”, explica Tiago. Missão cumprida, pois apetece mesmo ficar ali, afastados todos os relógios, só a contemplar.



Da padaria para a casa de Salazar

Rosália Rocha Araújo, padeira de Favaios, ainda não tinha completado 14 anos quando foi para Lisboa trabalhar como empregada doméstica: em plena ditadura, servindo António de Oliveira Salazar, no palacete de São Bento. Com base nos seus relatos, foi possível reconstituir o quotidiano dentro da residência oficial do então presidente do Conselho (incluindo os rigores impostos pela governanta, Maria de Jesus) e esboçar um retrato mais intimista do homem que esteve durante 36 anos à frente do Estado Novo, até a doença o afastar do poder.

Está tudo no livro “A última criada de Salazar”, publicado pelo jornalista Miguel Carvalho há já uma década, partindo do testemunho de Rosália, a única criada presente no quarto aquando da morte do ditador, em 1970. A sua saúde havia vindo a deteriorar-se, na sequência da famosa queda da cadeira – uma história que conheceu diferentes versões, como se conta ao longo daquelas páginas. Na padaria, Rosália deixa o pão, por momentos, para ir buscar a referida obra, em cuja capa surge muito jovem, a sorrir. O sorriso continua lá, assim como o seu surpreendente baú de recordações.

Elementos do baú de recordações de Rosália – em primeiro plano, enquanto jovem. (Fotografia de Igor Martins/GI)



Uma neerlandesa enamorada do Douro

Numas férias longínquas, Leni van Lopik, artista plástica neerlandesa, caiu de amores pelo Douro e decidiu tornar a relação séria. Por isso, trocou a vida em Utrecht, cidade grande nos Países Baixos, pela pacatez de uma aldeia no concelho de Armamar. Essa mudança refletiu-se nos seus trabalhos, que deixam transparecer o encanto pela região: inspirados na natureza circundante, chegam a incorporar materiais orgânicos recolhidos em caminhadas, pintados depois com tons vibrantes.

Bugalhos, partes de videiras e velhas cápsulas em estanho de garrafas de vinho podem ser detetados nas obras que formam a exposição “Cor no Douro”, na Adega Quanta Terra, em Favaios, até outubro. Merece especial destaque a instalação “Going on” (“em curso”), que vem sendo construída há anos. “Cada família tem uma caixa de sapatos em casa com pequenas coisas sentimentais, memórias. Estas são as minhas”, comenta Leni, diante daquele cortejo de pequenos tripés amparando desde joias maternas até brinquedos e recordações de viagens.

Leni van Lopik, e a sua peça “Going on”.
(Fotografia de Igor Martins/GI)



 

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