Crónica de Pedro Ivo Carvalho: A empatia de catálogo nas viagens que fazemos

Zambujeira do Mar: na costa onde há sempre tempo
No final, ninguém quer ficar sozinho. Seja numa digressão ocasional ao outro lado do mundo, seja numa romagem permanente ao nosso interior. Para onde estaremos a embarcar daqui a 15 anos?

Partilhamos tudo. Ou quase tudo. Porque a medida da nossa disponibilidade é sempre ambígua. Como deve ser ambígua qualquer relação com o hábito. Vamos recuar 15 anos. Imaginem-se num reduto de eleição, numa daquelas geografias onde sempre quiseram estar e de onde nunca partiram mesmo antes de lá terem estado. Agora pensem na forma como eternizavam as memórias fotográficas desse momento. E na forma como o fazem hoje, a toda a hora, com filtros e sem eles, com hashtags que não são mais do que bandarilhas douradas no nosso lombo saltimbanco, com uma cadência que só não é doentia porque está cristalizada na normalização dos chamados costumes sociais.

Há 15 anos, fazíamos umas fotos (na verdade, fotografávamo-nos uns aos outros e não a nós próprios, e também aí, nessa deriva narcisista, tudo mudou), passávamos essas imagens da máquina (ou do telemóvel) para o computador ou para um disco externo. Nalguns casos, projetávamo-las num televisor em noites de harmonia ou deboche. Os realmente excêntricos ousavam imprimir os fotogramas. E os varridos da cabeça editavam álbuns em papel, legendando as imagens e dando-lhes contexto.

Em certo sentido, éramos mais donos das viagens e das memórias. A ditadura da partilha (na verdade, é uma opção, é sempre uma opção, não adianta sermos fatalistas) força-nos, porém, à vulgaridade, a algo a que eu gosto de chamar de empatia de catálogo. Que é, numa visão menos académica do problema (quem é que falou em problema?), um expediente de que nos servimos para alcançar a felicidade no regaço dos outros. Se não houver testemunhas, então é porque não fomos a lado nenhum. O mero usufruto da experiência já não nos preenche. Mas se sociabilizamos as doenças, por que raio não haveremos de sociabilizar as viagens?

Seremos piores seres humanos por querermos mostrar o Mundo que calcamos a quem está longe? Seremos assim tão emocionalmente frágeis para que, progressivamente, nos sintamos impelidos a transformar as noites de partilha familiar num diário público ou semipúblico que se alimenta da aprovação de “amigos” que só vemos (lá está) nas fotografias?

Uma coreografia manca pode matar um argumento genial numa peça de teatro. Embora, no caso das viagens, os argumentos sejam globalmente prodigiosos, porque as coreografias são tradicionalmente cuidadas, pores-do-sol soberbos, linhas do horizonte bíblicas, nacos de carne interativos numa cama de legumes tridimensional. As viagens conseguem ser uma cataplana de estereótipos para consumir em massa num pequeno ecrã. A luz artificial é a bússula involuntária que nos guia.

Daqui a 15 anos, estaremos noutro patamar de viagens, talvez mais imersivas, talvez mais sensoriais. Mas o espelho onde nos vemos continuará a ser a projeção desalinhada de como nos queremos mostrar. Porque, no final, ninguém quer ficar sozinho. Seja numa digressão ocasional ao outro lado do Mundo, seja numa romagem permanente ao nosso interior.




Outros Artigos





Outros Conteúdos GMG





Send this to friend