O medo que protege e o medo que destrói

(Fotografia de Pedro Granadeiro/Global Imagens )
Cruzei, nos últimos tempos, por amizade e trabalho, parte de Portugal. A sensação de liberdade é pautada pela incerteza e por gestos que se estão a tornar hábitos.

Já voltei a dizer os pontos cardeais, que é como quem diz, regressei ao Sul, atravessei as montanhas até ao Norte mais distante, junto à raia. Há três fins de semana a desconfinar aos poucos, fi-lo por amizade e trabalho. Mas também por uma necessidade mais íntima, porque precisava de começar a lidar com o medo – de estar com os outros, de estar na rua, de respirar fundo.

Agora e nos próximos tempos, essa sensação de liberdade será sempre pautada pela incerteza e por gestos que se estão a tornar hábitos: como o ímpeto de abraçar alguém, que no último momento se retrai em sincronia e que nos faz dar um salto atrás, como a sensação de inércia do corpo que resiste a uma travagem brusca. Ainda provoca receio esta proximidade. E arranjam-se formas de compensar esse medo, essa desconfiança que não queremos: faz-se um sorriso mais aberto, ineficaz porque muitas vezes tapado com uma máscara, ou dizem-se palavras muito afáveis e tranquilizadoras, que mostram, sem o dizerem, “sei o que isso é; quero, como tu, sair disto bem; não quero perdas; também quero voltar a não ter de pensar onde toco; quero voltar a partilhar o mesmo copo de vinho”. O medo não é mau por si só. Bem pelo contrário, ajuda-nos a sobreviver. Mas é preciso perceber onde está a fronteira que separa o medo que nos protege do medo que nos afasta dos outros, o mesmo que instiga ódios, que limita liberdades, que restringe o direito à vida, que só se acalma, por momentos, com a anulação do outro. Não quero o medo que desumaniza. A esse não posso ceder.

Quanto ao outro, aprendo a viver com ele. Haverá com o passar do tempo uma certa leveza para lidar com os hábitos até agora estranhos à maior parte de nós. O cheiro do álcool-gel começa a ser familiar, assim como as máscaras se estão a tornar como qualquer outra peça de roupa – e aumentaremos a coleção para ter sempre alguma para combinar com o resto. Pelo menos, enquanto for necessário. Pois também saberemos deixar os hábitos que a custo aprendemos a banalizar.

Para já, começo a domesticar os medos subjacentes às viagens. Assim cruzei nos últimos tempos uma parte de Portugal. De Trás-os-Montes e Beiras à planície alentejana e vice-versa até ao verde Minho. E foi quando passei por aqueles suaves montes durienses carregados de vinhas que no próximo ano beberei, que não consegui deixar de pensar em Miguel Torga (como sempre acontece, não fosse ele o seu melhor tradutor), no seu profundo humanismo carregado de inconformismo e esperança. “Recomeça…./ Se puderes / Sem angústia / E sem pressa. / E os passos que deres, / Nesse caminho duro / Do futuro / Dá-os em liberdade / Enquanto não alcances / Não descanses. / De nenhum fruto queiras só metade (…)”, lembro, enquanto recordo também os tantos frutos que já abandonei a meio.

 




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