Crónica de Pedro Ivo Carvalho: Os portugueses descobriram Portugal

Crónica de Pedro Ivo Carvalho: Os portugueses descobriram Portugal
(Fotografia: Rui Oliveira/GI)
Ao que parece, este retângulo quase perfeito com mais de 900 quilómetros de costa, parcela distinta de terra que se percorre de uma ponta a outra em escassas sete horas, é do tamanho do Mundo.

Algum dia tinha de acontecer. Esse dia chegou. Bem, na verdade não é um dia no sentido de uma data redonda, é mais o momento. E o momento reveste-se de uma enorme solenidade. Os portugueses descobriram Portugal. Não Portugal todo, apenas aquela parte gigantesca do mapa de que a maioria fazia por se esquecer quando o sol quente os empurrava autoestrada fora até ao sotavento algarvio. Ao que parece, este retângulo quase perfeito de mais de 900 quilómetros de costa, parcela distinta de terra que se percorre de uma ponta a outra em escassas sete horas, é do tamanho do Mundo. Mesmo as paisagens mais frugais (cachoeiras, repuxos de água, desfiladeiros, varandas naturais sobre o nascer do sol e por aí fora) assumiram, por estes dias de confinamento transatlântico, uma dimensão quase espiritual, típica de alguém que foi entregue aos desmandos da Natureza depois de uma eternidade em clausura.

Mas não foi nem a Natureza nem Portugal que mudaram. Nós é que temos andado distraídos. Excessivamente voltados para o nosso interior e pouco voltados para o interior do território que nos dá razão de ser. Interessa-me pouco o deslumbramento dos novos exploradores e muito menos as epifanias telúricas dos que, por força das circunstâncias, veneram a portugalidade como traço diferenciador de uma urbanidade estafada que mais não é do que uma constante tempestade de ruído. É bonito porque é típico, rural, etnográfico. O costume.

O que me deixa entusiasmado com esta redescoberta de Portugal pelos portugueses é a força do exemplo. Perceber que o interior que resiste (a palavra é mesmo esta) arredado das engrenagens do desenvolvimento tem um potencial tremendo, vida própria, pessoas, talento, negócios, identidade.

Interessa-me mesmo é que possamos fazer desta exceção um hábito coletivo. Que o país esquecido para o qual acordamos tarde não seja consumido e deitado fora quando voltarmos de novo às nossas vidas não tão deslumbrantes do Instagram. Não temos que tirar lições de tudo, mas esta ao menos podia ficar-nos incrustada na pele: Portugal não se esgota nas grandes cidades nem nos chavões económicos dos teóricos que projetam o futuro a partir das grandes cidades. Para o ano haverá novamente um verão e um inverno. Com ou sem pandemia na bagagem, usemos o mapa com os olhos ensinados para o que deve ser uma missão patriótica. Esqueçam os planos salvadores e os incentivos que não seduzem ninguém. A mudança tem de ser natural, tem de parecer natural. Para poder ser verdadeira.




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