Crónica de Dora Mota: as pessoas que são os lugares

Fotografia: Rui Manuel Fonseca/GI
Acontece-me estar a passar na estrada e ficar subitamente atenta para ver o Serafim a conduzir a mota de madeira. Ou esperar pelos sinais da sinaleira de Valongo na rua principal.

Um programa de televisão no qual se falou do Senhor do Adeus, o idoso de impecável estilo que acenava às pessoas e aos carros em Lisboa, fez-me pensar noutras figuras que, pela minha vida fora, ficaram associadas a lugares. Com o tempo, na minha memória e afeto, deixaram de ser aquelas pessoas que estavam sempre naquele lugar – e passou a ser o lugar que estava sempre naquelas pessoas.

Posso mencionar a Sinaleira de Valongo, o Serafim e o Manel Cagalhoto. Este último era o exemplo mais perfeito de alguém que apenas estava, com esse estar a significar aquela encosta soalheira dos Casais. Era ele a aparecer, qual estátua viva, com o chapéu enterrado até aos olhos, o grande bigode e uma inércia de câmara lenta, e o meu pai a acenar-lhe vivamente, como se o Manel Cagalhoto estar ali fosse uma surpresa: – Olhó Manel Cagalhoto!

E o referido, com grande vagar, erguia a cara de maneira a assomarem os olhos debaixo da aba do chapéu, sorria, num sorriso que se desenhava devagar e devagar se desfazia, permanecendo depois de termos passado. Sei disto porque ficava a olhar até não o vermos mais. Passo muitas vezes no lugar do Manel Cagalhoto, sempre à espera de o ver surgir na curva, parecendo-me ouvir ressoar no monte o eco do cumprimento festivo do meu pai.

Também acontece eu passar na estrada principal e ficar subitamente atenta para não perder a passagem do Serafim, a conduzir a mota. Esse homem-criança, pacífico e alegre, apaixonado por motas, carros e bombeiros, foi uma presença mágica na minha infância. Possuía um volante de madeira que alguém lhe fizera, e a partir do qual a imaginação dele construíra uma mota potente e veloz. Corria, ondulante e feliz, quase a voar pela estrada fora, cantando os barulhos do motor, enquanto nós, crianças fascinadas, lhe cobiçávamos a mota e a fantasia. Quando chovia, o Serafim simulava as escovas limpa-vidros com o indicador e corria na mesma, porque a gasolina dele era infinita.

A sua candura era protegida pelos Bombeiros de Baltar, que lhe chamavam o comandante da Portela e lhe fizeram justas homenagens fúnebres, quando morreu de forma trágica, aos 55 anos, atropelado em maio passado. Ele mesmo, bombeiro de coração, marcava presença em todas as cerimónias e um dia prometeu ao meu pai: – Quando você morrer, avise-me, que eu também vou ao seu funeral.

Outro alegre fantasma com o qual me cruzo com frequência é a Sinaleira de Valongo, velhinha gentil que orquestrava o trânsito na rua central, de farda azul e botas, capacete e luvas brancas. Muitas vezes ela me sorria e eu, apesar de gostar dela, sentia algum temor daquele paradoxo da idosa miudinha que era vigorosa sinaleira. Soube mais dela pelo Google: chamava-se Isaura, era viúva de um polícia sinaleiro e distraía-se dos seus dias no asilo de Valongo com passeios ao centro, onde terá começado a manobrar o trânsito, carreira que se consolidou quando alguém lhe deu fardamento. No ambiente macio da minha memória, todos eles estão bem e felizes, nos lugares onde mais gostam de estar.

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