Crónica de Dora Mota: A importância de regressar a casa

opiniao dora mota
Alphonse Daudet caiu-me nas mãos quando eu mais o consegui entender e as "Cartas do meu moinho" acompanharam-me quando voltei a viver na aldeia da minha infância.

Tinha todas as minhas coisas em caixotes e vivia provisoriamente com os meus pais enquanto duravam obras na minha casa nova, quando encontrei, numa feira de velharias, o livro Cartas do meu moinho, do francês Alphonse Daudet (1840 – 1897). Custou um euro, valeu por mil porque a mudança do autor de Paris para a Provença parecia acompanhar a minha própria mudança de vida. Daudet foi habitar um moinho decadente que lhe serviu de base aos contos onde narrava tanto tocantes histórias da ruralidade ao seu redor, como dava rédea solta a contos de fulgurante fantasia. No primeiro conto, chamado Instalação, ele começa com uma frase que encaixou perfeita no que eu senti: «É daqui que vos escrevo, com a porta principal escancarada ao sol».

Foi há cinco meses, quando eu voltei à minha terra de porta escancarada ao sol, para sentir reativar no peito toda a ternura da infância por ela. Eu sou de Gandra, Paredes. É um lugar comum nos arredores do Porto, um híbrido entre aldeia e cidade, que não esconde os seus defeitos nem se envaidece das suas virtudes porque aqui as pessoas têm demasiado que fazer na horta para se dedicarem ao geo-egocentrismo.

Pode até ser um lugar mais ou menos feio para as pessoas que não daqui, mas para mim é um paraíso de campos verdes, com rebanhos e cavalos, sobreiros e pinheiros mansos. Roseiras, diospireiros e fiadas de pencas. Todos os santos pintados no teto da igreja matriz. Os sadios assados a lenha das adegas onde vem gente do Porto comer. A música dos ribeiros a correr, o carvalho centenário em cuja base eu me sentava a ler em pequena. A maneira com as pessoas falam: «onde é que bós fostes?». O diminutivo “ico” em vez de “inho”. A forma de dizer aos miúdos para não mexer em alguma coisa: «Tu num bulas aí».

Tive momentos em que me apeteceu abraçar as pessoas como se tivesse estado emigrada muitos anos. Senti-me um pássaro a quem tinham aberto a gaiola ao fim de um longo cativeiro. Só então percebi que passara boa parte da vida em inconsciente esforço de adaptação a lugares que não eram o meu habitat. Livre desse esforço, senti, qual Daudet no seu moinho, que o pensamento voava por toda a parte. Tenho um bloco de notas cheio de apontamentos com as histórias que andaram anos a vaguear na minha cabeça. Tenho no computador esboços de histórias já em andamento. Tudo me parece mais fácil, mais leve e mais bonito e, todavia, continuo a ser a mesma pessoa, a fazer as mesmas coisas.

Há dias, um colega meu da universidade, o Jorge Portugal, deixava no Facebook uma crónica a contar o que fez nos últimos oito anos, depois de ter regressado à sua terra, Castelo Branco, após 18 anos a viver em Braga, onde estudámos. É uma lista de coisas tão grande, intensa, criativa e feliz. Quando não estamos ocupados em adaptar-nos e pertencer, porque estamos em casa, a energia da nossa alma solta-se naturalmente. Estou satisfeita por ter percebido onde era, finalmente, a minha casa. E por ela ser numa terra de humanidade sincera e simples, que todos os dias faz o que tem a fazer, contando que Deus ajude.

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