Crónica de Ana Costa: Quando a vida nos dá limões

Fotografia: Freepik
É admirável a resiliência do ser humano, capaz de pegar no que aparece no caminho e extrair daí algo de bom, com frequência um ensinamento. Pode até tropeçar, mas avança de queixo erguido, porque a vida nunca pára, não pode parar.

Uma das maiores alegrias que tive nas últimas semanas foi finalmente fazer um bolo que não se parecesse com uma panqueca gigante, como é costumeiro. Finalmente cresceu, fez-se bem roliço e fofo. Era um bolo de limão com sementes de chia, coisa simples, mas que me trouxe um orgulhoso sentimento de conquista. Daquelas pequenas vitórias que em tempo de guerra ficam perdidas entre as derrotas, rebentando com toda a potência quando não há nada ao redor a distrair a atenção.

Desde então, encho-me de planos ambiciosos ao olhar pela janela e ver o pequeno limoeiro, esguio e desengonçado, de galhos curvados pelo peso dos frutos. Ponho-me a enumerar a lista de possibilidades: bolo de limão (Pois claro! Vou guardar a receita para a posteridade.), curd do mesmo, uma refrescante limonada, biscoitos, tarte merengada, risoto de ervilhas e hortelã com um punhado de raspas de limão – que bem que ficava – um cremoso cheesecake… Quem diria que algo tão adstringente pudesse dar azo a tantos prazeres.

Parece-me poder dizer o mesmo destes últimos meses, em que nos fechamos entre quatro paredes, constrangidos, frustrados por nos terem interrompido a rotina, numa espécie de suspensão da vida. Também eu o senti. Mas apercebo-me que à saudade, à confusão e à incerteza também se somaram oportunidades.

Há tempos, durante uma entrevista, a produtora de vinhos Joana Santiago dizia-me que tinha aproveitado a quarentena para fazer certas coisas a que antes nunca tinha encontrado tempo para dedicar, desejos e projetos antigos que finalmente conseguiu pôr em prática. Pequenas vitórias como o meu bolo de limão, atrevo-me a dizer, que no meio da guerra vieram trazer um laivo de satisfação.

Nesta pausa dos hábitos rotineiros, houve quem aprendesse a fazer pão ou a cozinhar, seguindo receitas que antes pareciam demasiado demoradas. Houve quem aprendesse a pintar ou a tocar aquele instrumento encostado há vários anos a um canto da sala. Houve quem finalmente se dedicasse com afinco à atividade física, ou pusesse a leitura em dia. Houve até quem desse os primeiros passos na jardinagem, fosse realmente num jardim ou no canteiro da varanda, e quem desse um passo atrás para respirar fundo e tomar o pulso a um novo ritmo, a uma nova forma de viver. E houve também quem não encontrasse tempo para nada, entre teletrabalho, cuidar das crianças e das lides da casa. Tarefa hercúlea.

É admirável a resiliência do ser humano, capaz de pegar no que aparece no caminho e extrair daí algo de bom, com frequência um ensinamento. Pode até tropeçar, mas avança de queixo erguido, porque a vida nunca pára, não pode parar.

Agora é altura de regressar, dizem. A máquina tem de recomeçar a mexer, há trabalho a fazer, um país (um mundo) para reconstruir. E também eu hei-de voltar à rotina, uma rotina diferente do que era, é certo, mas ainda assim uma rotina. E na incerteza da novo “normal”, sei isto: hei-de continuar a fazer planos ambiciosos para aqueles limões. Há que aproveitar enquanto os há. Depois hão-de vir os morangos em força, os pêssegos, as melancias…. Quanta alegria!




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