Vamos dar uma nova oportunidade à Serra do Caramulo?

A Serra do Caramulo anda afastada dos roteiros turísticos, mas merece uma nova oportunidade. Ou uma primeira visita. Natureza, carros clássicos, arte (de Vieira da Silva a Picasso) e boa comida: motivos não faltam.

Não há como negá-lo. Mais do que saudade, sente-se um leve trago a melancolia, quase desencanto, assim que se chega à vila do Caramulo. Como se estivesse parada no tempo, sim, mas sem ter ser sido capaz de conservar (ou reinventar) a vida e as obras que teve noutros tempos. Dos dezanove sanatórios que chegaram a fazer desta vila do concelho de Tondela a mais importante estância senatorial da Península Ibérica – foi criada em 1920 pelo médico Jerónimo de Lacerda, transformando-se desde logo num destino obrigatório para o tratamento de doenças pulmonares devido às características «milagrosas» do seu ar – restam agora pouco mais do que memórias. A maioria dos edifícios estão votados ao abandono desde a década de oitenta. O antigo Sanatório Salazar, transformado nos anos 1990 em Hotel do Caramulo, foi um dos poucos a ser reconvertido.

Há, contudo, quem continue a acreditar no enorme potencial turístico da vila. Da serra. Entre eles estão Guilherme Alves e Rui Pimentel, responsáveis pela recém-inaugurada Casa de Petiscos Batalha. Rui, portuense, foi diretor do Hotel do Caramulo. Guilherme, que trabalhou durante muitos anos na garrafeira do Continente, veio de Braga. «A minha mulher é de cá e quando chegou a altura de decidir onde viver não hesitamos», conta. E não se arrepende. «Os dias são, de facto, maiores. E este ar puro vale milhões.» Mas é sabido que viver do ar é um emprego que já deu frutos, por isso juntaram-se para fazer algo diferente. «Um risco», admite Guilherme, até porque se trata de um «sítio exclusivamente de petiscos», onde se pode comer uma tábua de queijos ou de enchidos regionais, certificados, acompanhado por um bom copo de vinho. «Muito dificilmente serviremos pratos quentes, diárias, para comer de faca e garfo», assegura. O ambiente requintado – sobressai o uso da pedra e da madeira – mostra a vontade de ser diferente num edifício que, como não poderia deixar de ser, tem uma ligação direta ao passado da vila: antiga Casa de Saúde Batalha. «Precisamos de criar uma oferta de qualidade, diversificada, para fixar as pessoas. As da terra e os turistas», conclui Rui.

 

Um museu obrigatório

A dois minutos fica o restaurante Montanha, referência maior em termos gastronómicos, reconhecido pelo seu ambiente serrano, intimista, mas sobretudo por pratos como o cabrito, chanfana na púcara, rojões da aldeia ou polvo e bacalhau à lagareiro. É um dos embaixadores da terra – a seguir ao Museu do Caramulo.

O Museu do Caramulo (Fotografia: Paulo Spranger/GI)

Quase ninguém passa pelo Caramulo sem passar pelo museu. Talvez seja mais correto dizer que há quem vá ao Caramulo apenas para visitar o museu. Uma herança da família Lacerda que continua de boa saúde, mais de sessenta anos depois da abertura. Foi fundado nos anos 1950 pelos filhos do patriarca (Abel e João de Lacerda), que construíram dois edifícios à medida das suas paixões: os motores e a arte. Se num dos edifícios estão expostas mais de quinhentas obras – pintura, escultura, mobiliário, cerâmica e tapeçarias que vão do antigo Egito até Picasso, Vieira da Silva e Dalí –, no outro existe uma coleção com mais de uma centena de veículos clássicos. Carros do século XIX, motociclos, jipes de guerra até viaturas de competição, há de tudo um pouco.

Os automóveis transformaram-se mesmo no maior cartão-de-visita local – mais do que a própria natureza –, com as estradas a encherem-se de gente várias vezes ao ano para assistir ao Caramulo Motorfestival e ao Campeonato Nacional de Montanha. Esta última, uma competição com um percurso de 2,8 quilómetros que termina com a chegada ao Cabeço da Neve, a 976 metros de altitude. A poucos metros de distância existe uma plataforma de descolagem de parapente onde, sob marcação, é possível fazer batismos de voo. Voos sobre o vale de Besteiros com uma vista que se estende até à serra da Estrela. Ainda um pouco mais acima fica o Caramulinho, a 1070 metros, o ponto mais alto da serra, cenário ideal para um piquenique ou uma caminhada.

 

Abrir caminho por entre a paisagem

O Caramulo atinge o seu ponto alto no Caramulinho, mas não necessariamente o seu ponto maior. Chegadas aqui a maioria das pessoas dá meia volta e regressa à vila, mas há muito por explorar. Uma placa indica «aldeias típicas». Valerá a pena o desvio? Não são aldeias tão típicas e de beleza imediata como as Aldeias de Xisto, na serra da Lousã, mas são aldeias autênticas, com uma força que reclama e merece atenção dos viajantes mais curiosos e menos apressados. O tipo de viajante que não se importa de andar dois ou três quilómetros às apalpadelas – atrás de uma tabuleta que aponta para um restaurante/bar chamado Ar Puro –, rodeado vegetação cada vez mais densa, por estradas locais que parecem não ir dar a lado nenhum.

O restaurante Ar Puro, em Covelo de Arca (Oliveira de Frades). (Fotografia: Paulo Spranger/GI)

Vai dar à aldeia do Covelo da Arca, já no concelho de Oliveira de Frades. O Ar Puro existe, sim – um restaurante e bar, tal como indicava a tabuleta – mas que em breve será também uma casa de turismo rural com dez quartos. Um ecoturismo saído da cabeça e do corpo de Júlio Malafaia, ele que abriu o já referido restaurante Montanha – «Agora é da minha cunhada, o bar é que continua ser explorado por mim» –, mas que não descansou enquanto não criou algo na terra onde nasceu. Uma aldeia humilde, de agricultores. «Queremos envolver o turista e a comunidade no processo», adianta, máquina de cortar relva na mão.

Na casa que era dos avós funciona agora um restaurante com ambiente e arquitetura contemporânea, mas pratos bem tradicionais, como chanfana na púcara, arroz de vinha de alhos, cabrito no forno ou lombo de porco serrano. O feijão, o milho, batatas, frutos secos, fruta e os legumes da época a que os habitantes não conseguiam dar saída, podem agora ser utilizados na cozinha ou comercializados na Hortaliça, loja/cabana em madeira pensada para venda de produtos agrícolas dos produtores locais. «Queremos voltar a criar uma dinâmica de produção e de comércio na aldeia», conclui Júlio, rodeado por castanheiros, vinhas, macieiras e protegido por uma serra tão dura quanto pura e, surpreendentemente, bela.

Reportagem publicada originalmente na revista Evasões – novembro de 2017.

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