Arquitetura em Matosinhos: da pesca à indústria conserveira

Senhor do Padrão. (Pedro Correia/Global Imagens)
Arquiteto e professor aposentado da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, José Salgado guia a EVASÕES pela história da cidade de Matosinhos através das suas mais significativas construções. Este roteiro ajuda perceber como é que uma localidade de pescadores e agricultores se tornou numa cidade de importância nacional - pelo seu porto e pela indústria conserveira - e numa referência internacional no mundo da arquitetura.

[Ler segunda parte aqui: Arquitetura em Matosinhos: cidade moderna e contemporânea]

IGREJA DE BOM JESUS DE MATOSINHOS E O SENHOR DO PADRÃO

Igreja do Bom Jesus de Matosinhos.
(Leonel de Castro/Global Imagens)

O templo como hoje se conhece – com a fachada de Nicolau Nasoni, foi terminado em 1740. Antes, em Matosinhos, diz José Salgado, “não havia nada de muito relevante do ponto de vista arquitetónico e urbanístico”. Este foi o primeiro edifício de referência. “É interessante como é que uma terrinha com poucos habitantes teve a capacidade de fazer uma igreja com aquela dimensão e riqueza”, considera.

Acontece que as obras da igreja são contemporâneas do monumento do Senhor do Padrão, onde supostamente a imagem do senhor de Matosinhos apareceu. “Toda esta história anda envolta em lendas. Era preciso fazer uma igreja importante porque a imagem do Sr. de Matosinhos era, segundo a lenda, uma das várias imagens de cristo feitas logo depois da sua morte e que foram lançadas ao mar”, conta o arquiteto.

A essa imagem – que está na base do culto do Senhor de Matosinhos e que segundo os especialistas não será tão antiga, mas sim dos séculos XII ou XIII – faltava-lhe um braço. Um dia, uma mulher que andava a catar lenha para a fogueira levou para casa um pedaço de madeira que lançou à lareira mas saltava sempre. A sua filha, muda, acabou por falar, dizendo que o pedaço era o braço de Nosso Senhor das Bouças (nome pelo qual era antes conhecido).

Senhor do Padrão.
(Leonel de Castro/Global Imagens)

“Quem está por trás disto é a Congregação do Oratório. O Marquês de Pombal expulsou os jesuítas da Universidade de Coimbra e traz essa congregação também ligada ao ensino para os substituir”. São eles que recebem as rendas do culto do Senhor de Matosinhos. Por isso, “nada melhor do que intensificar esse culto, torná-lo mais conhecido, porque dava mais proveitos para a congregação. Até ao século XX foi o grande edifício de Matosinhos”, conta o arquiteto.
A igreja foi implantada a meio caminho entre o polo agrícola que era Bouças e a foz do Leça. Em termos urbanísticos, “faz ligação da área piscatória à agrícola. Junto às vias, foram-se estabelecendo as famílias mais ricas”.

Rua Silva Cunha, 107, Matosinhos
Tel.: 229397980

Monumento do Senhor do Padrão
Avenida General Norton de Matos, 13, Matosinhos

OS BRASILEIROS TORNA-VIAGEM E RUA BRITO CAPELO

Teatro Constantino Nery. (Leonel de Castro/Global Imagens)

Nos finais do século XIX, a vila começa a beneficiar do dinheiro dos brasileiros torna-viagem. “São os casarões à brasileira. Como novos-ricos, tinham de mostrar que tinham triunfado na vida. A sua arquitetura é sempre ostentatória”, explica José Salgado. Como é exemplo o Palacete do Visconde de Trevões, que Emídio Ló Ferreira construiu para viver quando regressou do Brasil. Foi também que mandou construir o Cine-Teatro Constantino Nery. Depois, “muitos mandavam também abrir ruas”. Como o António Godinho, que se ofereceu para pagar a iluminação pública se o deixassem fazer uma rua com o seu nome. Mandou abrir uma rua que ia direta de sua casa até ao mar”. Hoje, na sua antiga casa funciona a Casa da Juventude.

O cine-teatro – inaugurado em 1906 na Avenida Serpa Pinto – deve o seu nome ao então governador do Estado brasileiro de Manaus, que foi protetor de Ló Ferreira enquanto esteve emigrado. O Constantino Nery destacou-se com as suas exibições cinematográficas. Nos anos 1980 estava já em decadência e quando foi adquirido pela Câmara Municipal, em 2001, encontrava-se em avançado estado de degradação. Foi recuperado com um projeto do arquiteto Alexandre Alves Costa. Reabriu em 2008 e desde aí que funciona como sala de espetáculos.

Paralela a esta avenida é a Brito Capelo. Atualmente longe dos seus tempos áureos, esta rua foi já o “Chiado de Matosinhos”. Lá, funcionava a câmara municipal antes de se mudar para o novo edifício. Além disso, “durante os anos 50 e 60 de manhã até à noite havia movimento, muito comércio, pastelarias, cinco cafés que estavam abertos até às 2h e tinham sempre gente. Agora, chega ao fim da tarde e já não se vê ninguém”, lamenta.

Palacete do Visconde de Trevões
Avenida Dom Afonso Henriques, 68

Cine-teatro Constantino Nery
Avenida Serpa Pinto, 242

PORTO DE LEIXÕES E TERMINAL DE CRUZEIROS

Porto de Leixões (Leonel de Castro/Global Imagens)

Foi em finais do século XVIII que se começou a pensar construir um porto de abrigo. “É que a barra do Douro era difícil e com o aumento do fluxo naval começou a ser pensada uma alternativa”. Junto à foz do rio Leça havia um conjunto de rochedos chamados leixões. “Esses afloramentos foram entendidos como potenciais facilitadores da construção de um porto de abrigo”, explica o arquiteto. A ideia inicial não era fazer um porto comercial, mas sim um porto para que os barcos que iam para o Douro e não podiam entrar por causa das marés, pudessem ali esperar.

Abriu só em finais do século XIX e, na altura, estava constantemente cheio de barcos à espera para entrar no Douro. Entretanto, dá-se a primeira Guerra Mundial, e há necessidade de desenvolvimento da pescas e da indústria conserveira.

O porto comercial começou a ser feito em 1914, no princípio da guerra, e foi inaugurado já no Estado Novo. “A doca 1 é inaugurada em 1933 e logo se percebe que, apesar de ser o maior porto artificial de Portugal, é pequenino”. Até porque por essa altura há muitas viagens de passageiros “e esses barcos não conseguiam dar a volta dentro do porto”. Nos anos 60 e 70 deu-se a ampliação. E essa estrutura “cavou uma separação definitiva entre Matosinhos e Leça”.

A obra mais recente do Porto de Leixões é o Terminal de Cruzeiros. Inaugurado em julho de 2015, o edifício projetado Luís Pedro Silva veio alterar a paisagem costeira do Porto e de Matosinhos. Em 2017, foi distinguido com o galardão de «Edifício do Ano 2017» (categoria de Arquitetura Pública), atribuído pelo influente website «ArchDaily». O edifício está aberto a visitas, aos domingos.

Terminal de Cruzeiros
Visitas guiadas: Portaria do Molhe Sul (via Rua do Godinho, junto do monumento Senhor do Padrão)
Horários: domingo: 10h15, 11h15, 12h15, 15h15, 16h15 e 17h15.
Preço: 5 euros (3,5 estudantes, cartão jovem e maiores de 65).

INDÚSTRIA CONSERVEIRA

Fábrica Conserveira Pinhais (Pedro Granadeiro/Global Imagens)

Com uma costa fértil em sardinha, Matosinhos tornou-se importante pela sua indústria conserveira. Para lá, nos inícios do século XX, rumam os primeiros empresários ligados às conservas em salmoura. “São gregos, italianos… as primeiras fabriquetas que aqui se instalam é para sardinha em salmoura. Depois, começam a vir os galegos que já estavam a incentivar a conserva em óleo”, conta o arquiteto.

Nas zonas que estavam desocupadas, a que hoje se dá o nome, “pomposamente, de Matosinhos Sul, que vai da Avenida da República ao Castelo do Queijo”, fizeram-se grandes talhões que foram ocupados pelas fábricas. A época áurea foram as décadas de 40 e 50 dos século XX, por causa da II Guerra. Matosinhos fornecia aliados e alemães. Foi a época da proliferação dos “oligarcas da conserva, que se tornaram rapidamente nos senhores de Matosinhos”. Isto até aos anos 60 e meados dos 70. Depois, com a crise da sardinha e das conservas, estes edifícios começam a ser abandonados. “Ficaram ali muitas estruturas à espera de nova utilização até que, nos anos 80, a Câmara tentou dar uma solução àquele espaço e lançou o programa de habitação de Matosinhos Sul”.

A única conserveira que ainda ali se mantém a laborar é a Pinhais, fundada há 100 anos, na Avenida Menéres, com uma singular fachada que se inspira nos modelos industriais britânicos. Está aberta a visitas desde maio do ano passado e já este ano foi classificada como Imóvel de Interesse Municipal, por ser a mais antiga do concelho ainda em laboração e por manter o processo de produção tradicional. Quem quiser visitá-la, pode inscrever-se através do site conservaspinhais.pt.

Conservas Pinhais & Cia
Avenida Menéres, 700
Tel.: 229380042
Web: conservaspinhais.pt
Visitas: de segunda a sexta, das 9h às 12h e das 14h às 17h (última visita às 16h00).
Obrigatório reservar com antecedência mínima de 72h.

JOSÉ SALGADO

José Salgado. (Pedro Granadeiro/Global Imagens)

Nasceu em Santa Cruz do Bispo e foi morar para Matosinhos com seis anos. Tirou o curso de Filosofia na Faculdade de Letras do Porto e depois ingressou no serviço militar. “Vacilei entre fugir ou não fugir da tropa e acabei por ir”. Passou aos serviços auxiliares, o que garantiu que não fosse para a guerra em África. A revolução de 25 de Abril apanhou-o a meio do serviço. Depois, quando dava aulas numa escola secundária, decidiu tirar o curso de Arquitetura. “Na tropa, fui cair num pelotão com 20 e tal pessoas e 18 eram arquitetos. Aquelas conversas diárias em Mafra sobre arquitetura mexeram comigo”. Inscreveu-se e, no segundo ano, abriu um concurso para professor na área da teoria e história no curso de Arquitetura. Um colega convenceu-o a concorrer e entrou. “A partir do segundo ano, fui aluno e professor do mesmo curso, o que foi chato”. Integrou-me “na mobília da escola, que depois se autonomizou como faculdade, sempre na área da teoria”, até que se reformou em 2009. “Só fiz um projeto para uma casa que tenho em Trás-os-Montes. Deu-me muito gozo porque foi uma experiência única e confirmei que não sou completamente desprovido”. Nos anos 80, foi convidado nas jornadas “Transformar Matosinhos”, onde apresentou uma comunicação sobre a evolução urbana de Matosinhos. Foi o autor do primeiro livro sobre Siza Vieira, “Álvaro Siza em Matosinhos”, em 1990, livro reeditado 15 anos mais tarde pela editora Afrontamento. José Salgado admite que “não lhe desagrada” que lhe chamem arquiteto, porque é. “Mas sou mais professor do que arquiteto”, diz.




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