Virgílio Nogueiro Gomes: “Tudo o que tinha laranja era português”

No livro "À Portuguesa...", Virgílio Nogueiro Gomes traçou o retrato da cozinha lusa tal como era vista de fora.
Através de uma seleção de 118 receitas de 31 livros de cozinheiros estrangeiros, publicados entre 1604 e 1900, o gastrónomo traçou o retrato da cozinha lusa tal como era vista de fora. No livro “À Portuguesa...”, desvenda uma jornada de seis anos que trouxe a descoberta de várias efabulações, curiosidades e novas perguntas.

Este livro nasceu de uma curiosidade sua em entender porque motivo algumas receitas publicadas no estrangeiro são denominadas “à portuguesa”. Saciar essa curiosidade levou-o a consultar obras desde 1604 e demorou seis anos. Como foi essa jornada?
Foi uma jornada um bocadinho pela desportiva sem pensar que ia dar um livro. Sempre estudei muitos os menus – o menu apareceu no século XIX –, há refeições muito importantes nas cortes europeias que tinham coisas “à portuguesa” e eu queria saber o que isso significava. Houve livros que eu sabia que existiam, autores fundamentais que tinha que consultar, mas encontrar o livro de 1604 [Ouverture de Cuisine, de Lancelot de Casteau] foi um acaso feliz. O meu livro está organizado por ordem cronológica, com a reprodução da primeira página de cada livro que cito e o fac simile das receitas da época. E só não tinha esse, que chegou quando já tinha a redação terminada e não estava à espera. Assim como chegaram outros dois, depois do livro já estar na tipografia, e um deles – que é o primeiro livro inglês de cozinha para famílias – tem uma receita de arroz doce à portuquesa. Mas, na verdade, não acrescentava muito àquele percurso de identificação das receitas.

Encontrou resposta para a pergunta do que é, afinal, o “à portuguesa” até ao final do século XIX?
Os salgados são mais difíceis do que os doces. Porque a partir do século XVIII, os portugueses tiveram a fama de distribuir na Europa a laranja doce. Tudo o que levava laranja era português ou à portuguesa, nos doces. E é muito curioso termos, aqui na bacia do Mediterrâneo, nove países nos quais a laranja se chama “portucal”.

E isso aconteceu também com o tomate, que surge em várias receitas consideradas “à portuguesa”?
Não, isso é uma contradição. Quando o livro termina, em 1900, é quando começa o século XX, há muita informação e, com o excesso de informação, há sempre desinformação. Porque, em 1902, o senhor Escoffier, um chefe de cozinha importantíssimo, é que fixa no seu dicionário de cozinha [Le Guide Culinaire] que tudo o que é português é porque leva tomate… quando Portugal foi o último país da Europa a ter o tomate. Quem traz o tomate para a Europa são os espanhóis que, em guerras constantes com os portugueses, nunca nos facilitaram o tomate. O tomate começa pela Itália, mas o que acontece em Portugal é que as variedades de tomate deram-se muito bem aqui. Mas é uma coisa tardia.
O Joseph Favre foi o primeiro dicionarista de culinária e penso que o Escoffier se veio apoiar no livro dele [Dictionaire Universel de Cuisine et Hygiène Alimentaire, 1894]; nota-se que há autores que se vieram apoiar nele e, noutros casos, que copiam as receitas. Mesmo a palavra marmelada, quem a introduz em França é o senhor Massialot, em 1715; e depois, em 1747, o Juan de la Mata, em Espanha, vem copiar as receitas dele, “à portuguesa”, que são iguais mas redigidas em espanhol e de uma forma ligeiramente diferente. Está-se a ver como naquele tempo havia informações erradas… Em 1817, André Viard escreve um livro [Le Cuisiner Royal… ou L´art de faire la cuisine et la patissérie] em que diz que todo o bom anfitrião francês deve ter determinados vinhos e aparecem quatro vinhos portugueses. Um é do Porto, outro de Carcavelos, Bucelas e Oeiras… e depois aparece o Madeira como um vinho de África, tal como o vinho das Canárias. Os conceitos de geografia não eram do rigor que hoje temos.

Além da laranja, encontrou algum padrão que pudesse explicar o “à portuguesa”?
Além da laranja, não. Para cada um dos autores procurei circunstâncias no território que pudessem explicar ou ter influência na referência portuguesa. Por exemplo, em relação a esse livro de 1604 [Ouverture de Cuisine, de Lancelot de Casteau, Liège], refiro que os portugueses tinham uma influência diplomática importante nos Países Baixos, porque era a partir dali que comercializavam os produtos das Descobertas. O imperador Carlos V era casado com uma portuguesa. Pode ter havido influência de pessoas portuguesas de proximidade. É o caso do segundo livro que cito [Libro del Arte de Cozina, Domingos Hernández de Maceras], que é o livro de cozinha da Universidade de Salamanca, onde sempre houve alunos portugueses, muitos de Coimbra, mas também de Trás-os-Montes e das Beiras. O autor dá cinco receitas de coelho e, na que chama portuguesa, diz “esta é a melhor forma de confecionar o coelho”. Será que foi influência dos alunos portugueses que levaram as receitas?
O livro mais importante é o terceiro, considerada a obra determinante de culinária de Espanha [Arte de Cocina, Pastelería, Vizcochería y Conserveria, de Francisco Martinez Montiño]. Só que ele esteve oito meses com o rei Filipe II em Portugal como chefe de cozinha e aprendeu muitas coisas portuguesas. Chama apenas a cinco receitas “à portuguesa”, mas acontece que há outras receitas que são iguais a receitas nossas – porque é que chama “à portuguesa” a umas e a outras não? Ficam muitas dúvidas.
A França é o país da Europa com mais livros de culinária do passado. O século XVIII é fascinante, o século XIX tem os grandes mestres e um deles, o Carême tem um molho à portuguesa, que ele considera um dos molhos essenciais da cozinha. Quando vamos ver os ingredientes e o modo de fazer, descobrimos que ele tem dois vinhos espanhóis e não tem portugueses.

No livro, refere também a presença de receitas bizarras, que não existem no receituário português, como uma caldeirada de frango com enguias.
Encontram-se coisas muito estranhas. Eu já tinha estudado um menu histórico do século XIX, quando Napoleão oferece uma refeição que demorou oito horas e ficou conhecida como “O jantar dos três imperadores”, porque estavam lá os imperadores russo e alemão, e estão lá frangos à portuguesa. Um historiador francês publicou um livro só sobre essa refeição, dá as receitas todas, menos a dos frangos à portuguesa, o que é estranho. Numa viagem de Estado que fez a Inglaterra, D. Manuel II foi recebido com umas galinholas à D. Manuel II. Ainda hoje acontece nas refeições de Estado fazerem-se receitas como forma de homenagear o convidado principal. A gente, às vezes, tropeça em informações para as quais não consegue explicação final.

O que destaca também é que, por vezes, essas informações estranhas ou erradas permaneceram em edições bem mais recentes desses livros. O que pode explicar isso?
Permanecem, à excepção de alguns que fazem versões mais modernas. O século XX perturba muito, é desestabilizador, há tanta informação que cria desinformação.

Prevalece o que diz Inês de Ornellas e Castro, no prefácio: Portugal era suficientemente europeu para poder ser citado pela Alta Cozinha, mas suficientemente periférico para sobre ele se poder efabular?
Prevalece completamente. No dicionário da Academia dos Gastrónomos [França], em 1962, escreve-se que uma das receitas portuguesas mais populares é um bacalhau com mexilhões e vinho tinto que nós não conhecemos. E estamos nos anos 60 do século XX! E o Guía Internacional del Gourmet de Barcelona escreve, em 1983, que Portugal é um país miserável, que a cozinha é pobre, que se perguntarem a um português o que é a sua cozinha ele não sabe… temos peixe bom e pronto! Estamos em 1983 e Portugal é um jardinzinho aqui na ponta da Europa, e não se lhe dá importância. Essa importância teve-a nos séculos XVII e XVIII por influência do império português

Este livro poderá ter alguma sequela ou a curiosidade está encerrada?
Não, não está. Já fiz uma crónica com informação que recebi depois do livro estar pronto, continuo na busca de livros estrangeiros anteriores a 1900, mas não sei se haverá material para fazer um segundo livro. Poderei vir a fazer um livro sobre como se altera uma tradição… Há excesso de registos. Por exemplo, a primeira vez que se publicou a receita das amêijoas à Bulhão Pato foi em 1973, e aparece como levando vinho, mas a receita original não tem vinho.
Mas a receita mais adulterada nasceu em 1947 e é a do bacalhau espiritual, que se vende nuns sítios como prato do dia a 7 ou 8 euros, e não pode ser o mesmo que se vende no sítio onde nasceu, onde pedem 40 minutos de espera e é 32 euros a dose. Popularizou-se, perverteu-se, mas o erro é manterem o nome às coisas. Quando há receitas tradicionais que têm nome, e se introduzem elementos que as alterem, devem-se citar. A mim não me custa nada que me ponham num restaurante amêijoas à Bulhão Pato com vinho, em Portugal até é obrigatório referir o vinho como um dos elementos alergéneos porque contém sulfitos.
Temos ainda a história do maçarico… e ainda outro dia escrevi: coitados dos nossos antepassados, demoraram tanto tempo a conseguir cozinhar tudo sem a labareda tocar no alimento e agora vamos pôr labaredas em cima do alimento. A mim sabe-me sempre a queimado.

À Portuguesa: receitas em livros estrangeiros até 1900 | Virgílio Nogueiro Gomes | Marcador | 200 pág. | PVP: 16,90 euros

Onde ler mais do autor
No site Virgílio Gomes encontra crónicas, notícias, livros e notas sobre restaurantes.




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