Monsanto e Idanha-a-Velha: passear entre aldeias históricas

Monsanto e Idanha-a-Velha: passear entre aldeias históricas
Passear pelas aldeias históricas de Monsanto e Idanha-a-Velha é constatar que nem só de características geológicas se faz o cartão de visita destas vizinhas beirãs. Há artesãos que mantêm vivas tradições folclóricas e cozinheiros que respeitam o produto local. Guardiões da memória que não deixam o legado morrer.

As frases de quem por ali viveu ou passeou estão escritas nas paredes. «De pedras, julgava o viajante ter tudo. Não o diga quem nunca veio a Monsanto». Esta pertence a José Saramago e lê-se junto à entrada do Petiscos e Granitos, o restaurante que espelha o espírito da aldeia onde está situado de duas formas claras. Incorpora os blocos graníticos típicos de Monsanto na sua estrutura, que é, de resto, a imagem de marca desta aldeia histórica da Beira Baixa, e coloca na mesa o que ali se produz.

«Quando me reformei, vim para aqui», conta João Soares. Há década e meia que deixou a Marinha e se dedica a este restaurante que é um encanto para amantes de geologia. Todos os dias, recebe visitantes de todo o mundo. É assim em Monsanto, desde que foi distinguida, em 1938, como a Aldeia Mais Portuguesa de Portugal, num concurso do Estado Novo. «Os asiáticos ficam malucos com as rochas graníticas incorporadas nas paredes. Deitam-se no chão a tirar fotografias e tudo», ri-se o proprietário e cozinheiro. Tem 70 anos. Sorriso fácil, gosta de conversar e tem um tom de voz sereno. Nos últimos três meses, serviram quase duas mil refeições.

João Soares é o proprietário do Petiscos e Granitos, um dos restaurantes-chave quando se fala em Monsanto. (Fotografias: Leonardo Negrão/GI)

Assim como a própria aldeia, também algumas das salas deste restaurante estão cobertas de blocos graníticos.

Um dos pontos de passagem na Rota dos Barrocais.

A alheira que acompanha os ovos é de Monsanto, assim como o queijo de ovelha que se junta ao polvo gratinado e às batatinhas no forno. Também a carne que se faz na chapa é da região. Casos das boxexinhas de porco ibérico, das costeletas de vitelão e do borrego com migas de espinafres e feijão encarnado. «Adoro cozinhar», conta João, que conta com a ajuda da mulher nos tachos.

 

 

O granito torna as duas salas interiores um cenário fascinante para uma refeição, mas o terraço com esplanada é imperativo em dias soalheiros. Come-se rodeado de magnólias, camélias e uma enorme figueira que nasceu de uma pequena fisga entre blocos graníticos. A vista desafogada, para as serras da Gardunha e da Estrela, vale por mil palavras. «Aqui come-se em silêncio. Só se ouvem as cabrinhas lá longe», ri-se João, enquanto traz para a mesa umas papas de carolo, uma das sobremesas mais típicas da região.

A digestão pode ser feita com a Rota dos Barrocais, o pecurso pedestre e sinalizado de sete quilómetros que passa pelas ruelas, ruínas e penedos de granito de Monsanto, com vistas panorâmicas para a planície raiana que a rodeia. Vale a pena tirar parte de uma manhã ou tarde para a fazer, descobrindo pelo caminho o Castelo de Monsanto, obra templária que remonta ao século XII, e a Torre de Lucano, no topo da qual está um galo feito em prata, réplica do prémio para Aldeia Mais Portuguesa de Portugal.

Maria é a responsável pela cozinha da Casa da Velha Fonte, em Idanha-a-Velha.

 

A cozinha de conforto da Casa da Velha Fonte veio dar nova vida a este espaço.

Idanha-a-Velha.

A 20 minutos de carro dali, Idanha-a-Velha não ganhou tal distinção, mas não se deixa ficar na sombra da vizinha. Aliás, esta é uma aldeia histórica que se recusa a cair no esquecimento, e que tem novidades para descobrir. Como a Casa da Velha Fonte, que abriu há seis meses. Uma nova vida para a Casa da Amoreira, o edifício dos anos 70 onde já funcionou a Liga dos Amigos da freguesia e a oportunidade de uma mudança «de vida e de ares» para Maria e Rui Sousa. Deixaram Sintra para um ritmo mais calmo.

«Às vezes sinto falta do mar e da família, mas aqui ganhámos outra», explica a proprietária e chef, que se formou na Noruega em cozinha vegana e vegetariana. Em Idanha-a-Velha, coloca os conhecimentos em prática, com propostas onde se sente o seu carinho pela cozinha. Das sopas, a de favas e a de lavrador com legumes biológicos, ao bacalhau assado com castanhas e à sua versão de paella, com criadilhas, espargos e cogumelos shitake da região são alguns dos pratos que confeciona. É também ela quem faz as marmeladas e compotas caseiras que vão para a mesa e que acompanham enchidos e queijos locais. A homenagem à aldeia não se faz apenas pelos produtos, mas também pelas fotografias de moradores de Idanha-a-Velha espalhados pelo espaço.

Esta é uma casa pequena e intimista onde se come sem pressas mas importa não deixar o tempo passar demasiado. Até porque há muito para visitar. Desde o Lagar das Varas, que homenageia a cultura do azeite, a vestígios romanos como a Ponte Velha e as ruínas do Paço Episcopal.

 

Dormir numa casa de ofícios
No Ladoeiro, uma aldeia perto de Idanha-a-Velha, uma história de amor entre um ribatejano e uma asturiana estendeu-se aos seis hectares, há quase três décadas. «Quando chegámos, não havia luz nem telefone na zona. As pessoas começaram a sair para as cidades e nós estávamos a chegar. Disseram-nos que éramos loucos», conta Maria Celso Herrero. Mas como em tudo na vida, a perspetiva faz a diferença. «O facto de não haver nada fez-nos acreditar que poderíamos fazer tudo», acrescenta João Ludgero.

E assim foi. Construíram a Quinta dos Trevos de raíz e abriram-na ao público há seis anos, com quartos duplos e familiares e um apartamento com cozinha. Comum a todas as tipologias são as peças de decoração em ferro forjado, madeira e de tecelagem feitas pelo casal proprietário, uma paixão que mantêm há vários anos e que ensinam a quem quiser, com workshops variados de artesanato nesta quinta. Algumas das suas criações estão expostas em zonas comuns e à venda.

Maria Celso Herrero ensina e pratica tecelagem na sua Quinta dos Trevos.

João Ludgero restaura móveis e trabalha o ferro.

Um dos quartos da Quinta dos Trevos, no Ladoeiro.

Uma noite aqui é sinónimo de sossego e de ser bem recebido. Pela manhã, os bolos e compotas caseiras de Maria Celso ajudam a um despertar perfeito, que pode ser seguido de um passeio de bicicleta ou da observação das cerca de 30 espécies de aves diferentes que por ali passam. Vale a pena também deixar alguns minutos para ir até à sala de meditação ou para contemplar o lago que se encontra à entrada da quinta, rodeado de amoreiras e carvalhos.
«Aqui consigo desconectar», explica Maria Celso, junto aos seus teares. Exposto num destes, está a primeira peça que teceu, em linho branco. Entretanto, já vendeu peças para visitantes gregos e japoneses, por exemplo. «É importante que isto se transmita e não se perca», frisa.

 

Artesãos de talento de mãos calejadas
Olhos azuis. Barba branca e comprida. Cabelos longos. Não há quem não conheça José Relvas na Beira Baixa e arredores. Hoje, é um dos raros e únicos produtores do instrumento folclórico feito com recurso a pele de cabra. Tem 68 anos e fá-los desde que se lembra. «Aos 10 anos, já fazia isto. No início, lembro-me que os produzia a pedido, por brincadeira», recorda o artesão, no terraço da sua casa e ateliê em Idanha-a-Nova.

José Relvas.

As mãos estão gastas pelo trabalho. É impossível ter ideia de quantos adufes já fez. «O mais importante de tudo é a qualidade da pele», explica Relvas. A parte final do processo, de cozer a pele à estrutura de madeira, é mais rápida e pode demorar até três horas. Já curtir e tratar a pele, de antemão, pode levar até dois dias. «Guio-me pela qualidade e não pela quantidade», atira o artesão, mostrando exemplares com 20 anos que ainda funcionam na perfeição.
Já tocou com Zeca Afonso e viajou pelo mundo para dar a conhecer o adufe. «Já nem sei bem todos os sítios por onde andei. Mas ainda cá ando», ressalva. A sua arte pode ser comprada na sua página oficial no Facebook. «Recebo pedidos de todo o mundo», remata. O interesse continua vivo.

O mesmo poderia dizer Maria Helena Pinheiro, que quase todos os dias se senta ao ar livre, nas escadas da Rua da Fonte Ferreira, em Monsanto, com os seus cestos de tecidos, dedais, linhas e agulhas. É uma das artesãs que ainda faz à mão marafonas, as típicas bonecas que nasceram nesta aldeia. Não têm olhos nem boca, estão vestidas com traje regional colorido e têm como base uma cruz de madeira. Maria Helena conseguiria fazê-las de olhos fechados, tantos que são os anos de prática. Mais de 60, pelo menos. «Agora em maio, faço 76 anos», conta a quem por ali passa e para, com curiosidade, para comprar um exemplar, de tamanhos variados.

Maria Helena Pinheiro e as suas Marafonas.

«Numa noite, sou capaz de fazer umas duas ou três», conta a artesã destas bonecas que têm alguns mitos associados. São usadas para afastar trovoadas e estão associadas à ideia de felicidade e fertilidade de um casal. «Dizem que dão sorte e que resulta», diz, entre risos, a mulher que já foi notícia na imprensa madrilena. A experiência nota-se nos dedos calejados. Sinais de uma Beira Baixa histórica que recusa abdicar da memória, da conquista e do legado. Com razão.

 

Algo está a fazer com que o sistema não consiga mostrar a ficha ténica desejada. Pedimos desculpa pelo incómodo.

 

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