Crónica de João Mestre: A preços baixos, quem paga realmente a conta?

(Fotografia: João Santos/GI)
(Fotografia: João Santos/GI)
Queremos comer bem, a bons preços e, de caminho, com salários justos para toda a gente. Se é possível? É. Desde que mudemos a nossa perceção do que significa «bons preços». É sempre de pessoas e de comida que se trata - e ambos merecem ser respeitados.

O meu pai não era um convidado fácil. Sempre que o levava a almoçar fora para tentar impressioná-lo, ele cismava-se nos pormenores. Que o bife do lombo era, na verdade, outro qualquer corte menos nobre. Que o molho especial se desmontava em dois ou três ingredientes deslindados à primeira garfada. Que o food cost não dava margem suficiente para o restaurante se governar – ele sabia ao cêntimo quanto custava aquela porção de arroz, de alface, de carne.

Importa explicar: o meu pai era cozinheiro. Um cozinheiro da velha guarda, exímio no corte das carnes, mão milimétrica para o tempero, talhado por mais de 40 anos de rotina para a consistência. Portanto, ótima companhia mas um convidado terrível.

O meu irmão, transmontano adotivo, levou-o um dia a comer posta. No regresso, perguntei-lhe a opinião. Veredito: «Como é possível aquela gente governar-se com tão pouco dinheiro por tanta comida?». Enquanto o filho se deliciava com a tenrura da carne, a abundância da dose, o bom velho Arlindo não saía da sua inquietação. «E gostaste da carne?», insisti. «Sim, mas com o que eles pagam de gás, luz, renda, ou não pagam aos fornecedores ou trabalham para aquecer.» Assim, posto em duas possibilidades, aquilo que o low-cost podia significar longe dos olhos do consumidor. Isso e uma terceira hipótese: a qualidade dos produtos. A partir desse dia, nunca uma refeição boa e barata me voltou a cair como caía. «Há alguém a pagar caro por este barato.»

Os prejudicados são sempre os mesmos. O pessoal de sala e de cozinha que não se consegue livrar dos salários baixos. E os produtores, que não têm outro remédio senão ver as suas margens esmagadas e decidir: aceitar trabalhar por pouco (e pagar também o mínimo aos seus empregados) ou atalhar (com transgénicos, pesticidas e outras batotas), com perdas para o sabor, a saúde pública, o ambiente.

Pagar 5 euros por aquele prato do dia que inclui sopa, bebida e café pode querer dizer várias destas coisas. É esse o resultado da pressão constante no baixo preço. O negócio da comida, e por atacado da produção agrícola, deixa de ser sustentável, a não ser para aqueles que conseguem trabalhar em escala. E nós a apregoar ao mundo o paraíso gastronómico que é o nosso país…

Isto temos de aceitar: queremos comer fora todos os dias, sem acabar a comer douradinhos, frango de má qualidade, arroz espapaçado? Temos de compensar o dono do restaurante ou café de esquina com o preço justo pelo seu trabalho e o dos seus, pelas contas à justa que faz para cobrir renda, água, gás, e pelo que custa manter uma relação de confiança com os fornecedores. E isso dificilmente se consegue a 5 euros o menu completo.

Se queremos comer bem, em quantidade e qualidade, ser bem atendidos e, de caminho, sonhar com o dia em que os salários chegarão a valores justos, então temos de mudar a noção daquilo que é uma refeição barata. Falando de Lisboa, e do restaurante de São Domingos de Benfica ao qual gostaria de poder ir todos os dias, a qualidade a bom preço andará pelos 10 euros. (Para os outros dias, paciência, há a marmita.)

O capítulo do prazer à mesa é assunto mais exigente, mas a lógica é a mesma. Quando queremos aqueles regalos de cozinha regional, leitão assado, um bom peixe de mar na grelha sem truques para disfarçar defeitos, um cozido à portuguesa com enchidos autênticos, legumes da horta com as cozeduras todas no ponto, não podemos esperar encontrá-los no prato do dia.

Pratos de festa são para dias festivos. E têm grande custo e exigência para quem os prepara. Se buscarmos uma refeição pelo prazer à mesa e não pelo mero ato de matar a fome, habituemo-nos a isso: 20 euros, por vezes 25-30, não é assim tanto. A diferença percebe-se – e tem impacto direto nas pequenas economias locais. Vale a pena sair menos vezes, mas fazer que cada saída conte. É tudo uma questão de compreender e valorizar o trabalho envolvido. Mas uma coisa é mais ou menos matemática: se lhe oferecerem «gourmet low-cost», desconfie. Alguém estará a sair prejudicado.

 

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