Crónica de João Mestre: Pela boca se perde o medo do mundo

O Mr. Lu, do chef Zhiaming Lu, é um restaurante obrigatório tanto para amantes de cozinha chinesa como para quem ainda não compreendeu o seu apelo. (Gonçalo Villaverde/GI)
O Mr. Lu, do chef Zhiaming Lu, é um restaurante obrigatório tanto para amantes de cozinha chinesa como para quem ainda não compreendeu o seu apelo. (Gonçalo Villaverde/GI)
Spielberg só queria fazer-nos rir, mas ao servir miolos de macaco ofendeu um país e perpetuou um estereótipo. À distância de 35 anos, uma conclusão óbvia: cada vez mais, temos de viajar. De preferência, com apetite.

Willy estava a ter um dia difícil. De véspera, fora raptada por um estranho, lançada de um terceiro andar e, mais tarde, de um avião em pleno voo, isto para não falar do rasgão no seu estimado «vestido de Paris». Agora, sentada à mesa no palácio de Pankot, após passar a noite na selva entre criaturas aterradoras, serviam-lhe um banquete grotesco. Sopa de olhos, escaravelhos, enguias vivas e, para sobremesa, miolos de macaco gelados. Willy revirou os olhos e desmaiou com o choque. Nós rimo-nos a bandeiras despregadas.

Quem viu Indiana Jones e o templo perdido reconhecerá a história. O filme data de 1984 e por esses tempos o mundo para lá da América e da Europa pró-americana era um sítio longínquo, desconhecido, exótico, bárbaro. Ao ponto de se poder insinuar, mesmo em jeito de comic relief, que os indianos comeriam este género de petiscos. Nós rimo-nos. Os indianos, não.

Esta é uma das várias argoladas culturais da aventura realizada por Steven Spielberg – há também um culto sinistro que, embora devoto de Kali, devia mais à magia negra afro-americana, misturada com pinturas faciais evocativas do Dia dos Mortos mexicano. Um caldeirão de culturas, no sentido mais desastrado do termo.

Isto só passava graças à generalizada falta de noção que os públicos ocidentais tinham do mundo. O que escapasse ao eixo do Atlântico Norte era esquisito. Vivia-se num mundo polarizado, de muros e fronteiras patrulhadas, de desconfiança entre países vizinhos, de medo como sentimento geral perante o outro. Há uma palavra para isso, e o seu sentido é bem mais amplo do que aquele usado para caraterizar a extrema-direita e o populismo em geral.

Xenofobia. A palavra veio-me à boca quase sem eu dar por ela, quando a minha filha de 7 anos (fascinada pelo Indiana Jones) me perguntou se «Na Índia comem miolos de macaco?», seguido de «Então porque mostram isso no filme?» e de «Alguém acreditou mesmo que era verdade?». A tentativa de lhe responder fez-me voltar ao passado e à minha terra.

No início dos anos 1990, abriu um restaurante chinês no Cartaxo e o assunto deu muito falatório. Sobretudo junto daqueles que juravam nunca lá meter os pés. Por desconfiança, por repulsa, mas sobretudo pelo medo daquilo que não conheciam: «E se me servem carne de cão? Ou insetos? E se a comida simplesmente não prestar?» Provar e não gostar é um direito. Repudiar como ponto de partida não é senão aversão àquilo que sai do nosso normal. Xenofobia, ainda que daquela ligeira, que não fere.

Desculpem trazer o Indiana Jones (um belo filme, não obstante) para um assunto tão sério, mas afigurou-se o pretexto certo para introduzir a noção de que este pequeno medo do mundo tem fácil solução. Enquanto temos fronteiras abertas e vizinhos de confiança, precisamos de sair – de casa, da cidade, do país.

É altura de férias, portanto é também a temporada de arejar a cabeça, largar ideias feitas, ver como vivem os outros. Enfim, viajar – e almoçar naquele restaurante estrangeiro que nunca experimentámos pode ser por si só uma viagem. Lisboa, Porto e respetivos arredores estão cada vez mais interessantes em matéria de cozinhas internacionais, há que pôr essa riqueza a bom uso. E, já agora, levar as crianças, sentá-las à mesma mesa, habituá-las ao que lhes é estranho, para que o mundo não lhes cause estranheza. A xenofobia começa pela boca – e ninguém com apetite pelo mundo dará um bom xenófobo.

 

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