Crónica de Valter Hugo Mãe: A vista de Santa Clara

Vila do Conde (Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens )

Íamos espreitar os meninos presos na casa gigante de Santa Clara. Por vezes, subindo pela igreja, pendurados nos muros, víamos o pátio interior onde jogavam e se enfureciam para vencer sem poderem dizer palavrões. Os padres tomavam-lhes conta das virtudes. Os meninos presos estavam a perder as maldades à força de orações e penitências. Jogavam e, quase sempre, davam com os nossos modos espias e perguntavam coisas até que viesse alguém descobrir-nos e berrar. Perguntavam se tínhamos cigarros ou dinheiro. Respondíamos que não. Rogavam-nos pragas. Éramos imprestáveis. Inventavam que nos batiam. Se nos apanhassem, se tivéssemos o azar de lhes cair ao pátio, iam desfazer-nos. Nós pensávamos que era verdade que fossem capazes de o fazer. Imaginávamos-lhes crimes grandes e muito sangue, como nos piores filmes.

Os meninos presos da casa de correção, na verdade, nunca nos fizeram mal. Eu tinha pena que não lhes abrissem as portas para nos falarem e se espalharem igualmente pela cidade, até à praia. Acreditei sempre que mais depressa se curariam das maldades tendo amigos. Parecia-me que todos nós nos esquivávamos de sermos horrendos à força de gostarmos de alguém, e de querermos merecer também o cuidado de alguém.

Quando já adulto, conheci um senhor que ali se demorou uns anos. Discutimos como as vistas das janelas eram belezas para reis. O palácio que habitavam tinha tamanho para nobreza e era irónico que fosse usado para os prender. Dizia: éramos uns frangos ridículos e sem importância. Os padres queriam que lêssemos e rezássemos como se fosse encher uma caixa vazia. Quando entrei, foi o que me disseram. Que esqueceria tudo lá de fora e voltaria a aprender como se me tornasse, subitamente, num recipiente vazio.

Pediu-me que o acompanhasse ao monte, ao varandim onde a cidade se estende. Assim o fiz. Vista desde o varandim, Vila do Conde é a cidade bonita que vemos entre o rio e o mar. O senhor disse-me: quando íamos às janelas, mesmo que estivessem gradeadas severamente, a alma inteira ia por aqui fora e era como se metade do corpo estivesse livre também. Ao menos, metade do corpo. A impressão que tenho, regressando amiúde àquele lugar, é que até o corpo dobra, na ânsia de ser mais livre ainda, deitado sempre pela paisagem pacata, quieta, de Vila do Conde.




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