Crónica de Pedro Ivo Carvalho: ainda é cedo para termos saudades?

Douro Sky Lounge - Hotel Vincci Porto. Fotografia: João Manuel Ribeiro/GI
É bom termos saudades da nossa vida pacata. Das pessoas que não abraçávamos e agora queremos agarrar. Isso não faz de nós seres banais. Continuamos carregados de defeitos.

Será uma ligeireza de análise da minha parte, mas são os olhares de “presa em fuga” das pessoas nos corredores do supermercado que mais me têm assustado nestes dias pandémicos. O ato banal de nos acercarmos da bancada da fruta para resgatar umas bananas ou uns morangos é, em matéria de perigosidade, o equivalente a atravessarmos em passo de corrida um campo minado no Iémen. E já nem falo na missão suicida que representa tirar uma uva do cacho para perceber se são doces. Há os que vão de máscara, há os que vão de máscara e de luvas e há, ainda, os que levam tudo isso mais um chapéu e uns óculos de sol. É no supermercado que nos cai a ficha quando nos agitam o fantasma dos tempos de guerra. É ali, naquela batalha informal pela aquisição de bens essenciais, que vemos refletido o medo e a desconfiança mais primitivos.

Julgo falar por quase todos quando digo ter saudades de coisas que nunca foram importantes e que agora percebemos serem definidoras do nosso caráter. Mas será que ainda é cedo para termos saudades? Saudades de dizer “mesa para dois”. Saudades das voltas pachorrentas ao domingo. Saudades de levantar um copo numa mesa comprida e rir de disparates que jamais teriam graça se não fossem amplificados por aquele amigo disparatado. Saudades do trânsito insuportável na VCI, todas as manhãs aquele ramerrame, do congestionamento no nó do Mercado Abastecedor que nos chega via rádio, de não ter como fugir àquela floresta de camiões. Saudades de desejar ter asas para sobrevoar as filas, as asas que agora nos falham para voos que verdadeiramente contam.

Saudades da dúvida existencial na esplanada: fico sentado ao sol ou naquele bocadinho de sombra que ainda preserva o calor dos raios mas não me deixará com dores de cabeça durante a tarde? Saudades dos tempos em que os pivôs televisivos diziam só as notícias e não brandiam lições de moral com uma desenvoltura narrativa próxima da dos livros de autoajuda do Gustavo Santos. O “ama-te a ti mesmo” original é, agora e devidamente adaptado, um “protege-te a ti mesmo e fica em casa pelo amor a todos nós”. Tenho saudades daquele empregado de café que acorda todos os dias maldisposto. E até aposto que ele também tem saudades dos clientes que todos os dias o deixam maldisposto. Saudades de passear de mão dada de frente para o vento, saudades, imaginem, de ver as romarias de gente desencantada nas papelarias e quiosques a torrar o ganha-pão nas raspadinhas. Saudades de um bom vinho num bom restaurante, saudades de um vinho a martelo num restaurante castiço, saudades do barulho de uma sala cheia em que ninguém se ouve e todos se escutam. Mas isto é só o princípio. Será que ainda é cedo para termos saudades?

Não quero saber do pico, do planalto ou da curva achatada. Já tenho saudades. De poder dizer que vou, nem que não saiba para onde. É bom termos saudades da nossa vida pacata. Das pessoas que não abraçávamos e agora queremos agarrar. Isso não faz de nós seres banais. Faz de nós o que sempre fomos e sempre seremos. Humanos carregados de defeitos.




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