Crónica de Nuno Cardoso: o luxo dos relógios parados

(Fotografia de Artur Machado/GI)
Mais que qualquer associação à ostentação, quantificável ou medida em euros, o verdadeiro luxo dos tempos modernos é o tempo, esse bem precioso que escapa pelos dedos.

Para muitos, a noção de luxo ainda está intrinsecamente ligada ao mundo da ostentação, caro e inacessível a uma grande franja dos comuns mortais, guiada por critérios económicos e medida maioritariamente pelos zeros situados à direita da vírgula nos cheques. E sim, é claro que experienciar as mais estreladas mesas Michelin e as gigantes e confortáveis camas de hotéis cinco estrelas é tão luxuoso como prazeroso, o mesmo se aplicando a viagens para os mais exclusivos resorts paradisíacos, provas vínicas das colheitas mais raras ou visitas às requintadas lojas de luxo das avenidas mais nobres das cidades, por exemplo.

Ainda assim, e como acontece com quase tudo, o termo luxo tem evoluído com o tempo, ganhando novas e mais complexas camadas de significado, muitas destas menos palpáveis e quantificáveis. Para mim, o maior luxo de todos será sempre o tempo. O mesmo que cada vez mais sentirmos não ter, para fazermos o que bem nos apetece e apraz. O mesmo que nos escapa entre os dedos, com todos os afazeres das rotinas de hoje em dia, mais caóticas e encavalitadas do que nunca. O mesmo que muitos começaram a valorizar com a chegada da pandemia, há dois anos e meio, quando, pela primeira vez em muito tempo, fomos obrigados a parar o motor do carro e colocar em marcha-atrás algumas prioridades.

A verdade é que as 24 horas diárias são as mesmas de sempre, mas fomo-nos tornando exímios em querer estar em todo o lado, ao mesmo tempo. Os fins de semana passam a correr, e os dias úteis… nem se fala. Mas 2020 pode ter sido o início de uma nova fase. Um estudo da revista americana “Science Advances” dava conta que, com a chegada da pandemia, 75% dos inquiridos diminuiu a sua sensação de “pressão temporal” – leia-se o esforço malabarista de tentar cumprir as tarefas profissionais e pessoais de cada dia.

E o tempo tem coisas fabulosas, como página em branco que é. Para muitos de nós, o tempo que a pandemia nos trouxe foi o suficiente para ganhar coragem e mudar de vida, seja da cidade para o campo, ou de emprego. Mas também a saber apreciar mais as pequenas coisas que nos fazem felizes. Luxo é ter tempo para ler um bom livro, para cozinhar o nosso petisco preferido, para assistir ao por do sol na melhor companhia, para abraçar os que ainda cá temos, para rir, dançar, caminhar, pensar. Tudo isto sem ter que olhar para os ponteiros do relógio. Isto sim, é um luxo.




Outros Artigos





Outros Conteúdos GMG





Send this to friend