Crónica de Jorge Manuel Lopes: a ver Ibiza a passar

Ibiza (Fotografia de Martina Amaro/Pexels)
Ibiza mudou muito, muitíssimo, em 80 anos, mas a cidade alta, ou Dalt Vila, medieval e fortificada, não engana.

No Porto de Ibiza, numa segunda-feira de manhã no início de maio que só é de primavera no papel, pois que o sol e o ar têm verão. Sem sombra, sentado junto ao pedaço de asfalto onde param autocarros turísticos e as viaturas que fazem o transfer daqui até ao Aeroporto de Ibiza. É por uma dessas viaturas que espero e não desespero.

À frente, para sudeste, o Mediterrâneo cheio de promessas. À direita, a Estação Marítima de Formentera onde desembarquei há pouco de um ferry veloz que me trouxe da ilha mais pequena das Baleares. À esquerda, o comboio dos autocarros: param, descem visitantes americanos (mais ou menos novos, uma floresta de gente a rondar os dois metros), orientais, dos Países Baixos. Os visitantes parecem atordoados pela luz intensa de Ibiza e pelo calor e rumam vagarosamente na direção do centro histórico. Atrás de mim, com um cenário de Algarve fustigado por empreiteiros, na Avenida de Santa Eulària des Riu, o trânsito rumo à “baixa” é uma serpente metálica imóvel – e ainda faltava um bocadinho assim para o pico do frenesim estival na ilha, uma das capitais mundiais da vida noturna, das discotecas, da música de dança, do ócio. Em meu redor, volta e meia, gente a cuidar-se com jogging; não deve haver nesta terra lugar menos auspicioso para pôr a correr corpos de invejável régua e esquadro.

Ibiza mudou muito, muitíssimo, em 80 anos, mas a cidade alta, ou Dalt Vila, medieval e fortificada, não engana. Percorra-se o YouTube e lá está ela, inconfundível, na propaganda franquista do pós-guerra, todos humildes, típicos, genuínos, tementes a deus e monocromáticos; com as primeiras árvores da floresta turística cosmoplita-hippie nos anos 1960; e por aí fora no tempo.

Dalt Vila também se vislumbra daqui, deste pedaço de asfalto sem sombra, enquanto o transfer não chega (na verdade, o transfer já lá estava, longe, aparcado em silêncio atrás de um autocarro turístico). As viagens estão cheias de não-lugares como este, mas também de não-tempo – fixam-se na memória, ensinam muito, lembram o valor da espera. Mesmo que isto não seja bem Ibiza, a ilha branca. É só vê-la a passar.




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