Crónica de Inês Cardoso: Pedir generosidade ao mês de maio

Ao entrar no mês de maio é tradição pôr maias nas janelas e nas portas de casa. (Fotografia: Dora Mota)
Ao entrar no mês, as portas e janelas das casas eram enfeitadas com ramalhetes de giestas, a pedir proteção e um bom ano agrícola. Este ano encontrei as “maias” no centro do Porto.

A tradição perde-se no tempo e remonta a antigos rituais pagãos de fertilidade. Ao entrar em maio, as portas e janelas das casas eram enfeitadas com um ramalhete de flores em que predominavam as giestas amarelas, a pedir proteção e um bom ano agrícola. Já poucas pessoas o fazem atualmente no meu concelho, Proença-a-Nova, mas ainda existe a festa das Maias e na aldeia de Atalaias as crianças percorrem as ruas com colares e coroas feitos com flores amarelas do campo.

No segundo dia de maio, quando ia a sair de casa, no centro do Porto, dei de caras com três ramos de giesta na porta e janelas do prédio mesmo em frente. Terminava nesse dia o estado de emergência, o trabalho chamava e tudo me parecia doloroso nas ruas vazias da cidade. Aquele amarelo vibrante, subitamente, transportou-me para os campos das minhas raízes, tão coloridos nesta altura do ano. Há rosmaninho a perder de vista. Misturas de mil tons de rosa e lilás, azul e amarelo. Dezenas de flores minúsculas cujos nomes nunca soube, porque ficam perfeitas nesse desconhecimento de apenas existirem para ser vistas.

Desde miúda adoro os campos de margaças, porque em pleno inverno nos lembram que os dias frios e lentos estão a terminar. A flor de esteva por ser coincidente com a festa de São Marcos, sinónimo de tigelada de mel, na terra da minha mãe. A capela por anunciar os santos populares e os saltos sobre a fogueira, com as minhas primas, na terra do meu pai.

Um dos maiores especialistas portugueses em Leibniz é meu tio e sempre me fascinou que ele fosse, como todos os filósofos, de uma complexidade argumentativa difícil de acompanhar mas, ao mesmo tempo, de uma simplicidade desarmante quando o interlocutor que tem pela frente assim o recomenda. Cada vez que volta à aldeia, o meu tio Adelino percorre os carreiros e apanha as melhores flores para chá e é um cativante contador de histórias, dos que faz vibrar os ouvintes quando conta as asneiras da infância. A minha preferida é sobre uma tarde em que cercou os vizinhos com a aguilhada, a vara comprida com ponta de ferro que servia para picar os bois. A sabedoria deve ser isso: acumular e acumular saberes, sem nunca esquecer a perfeição das primeiras e pequenas coisas que vivemos. E a força de momentos mínimos, que descritos parecem banais mas no percurso da nossa vida souberam a infinito. A felicidade pode ser voltar a ter 10 ou 11 anos para andar com os pés descalços ao longo dos sulcos cheios de água fria abertos na terra, entre o milho alto.

Andamos a vida toda à procura dessa alegria suprema que só as coisas espontâneas nos trazem. Com o tempo conquistamos objetivos, pessoas, cruzamos livros e histórias, aprendemos e viajamos, para na verdade estarmos sempre ansiosos por voltar aos mesmos sítios. Os nossos. Que o tempo vai tornando cada vez maiores, como se os escavasse dentro de nós. Basta uma paisagem, um cheiro, uma memória, para inspirarmos vida a rodos. E dali voltarmos a sair, prontos para novas viagens.




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