Crónica de Inês Cardoso: As portas que nenhum vírus fecha

A esplanada do restaurante de peixe e marisco A Pastorinha, frente à praia de Carcavelos. (Fotografia: DR)
Caminhar foi sempre uma oportunidade de nos encontrarmos connosco e com os outros e o medo não deve levar-nos a recusar o tanto que há para conhecer e saborear.

Tenho há vários anos o lema “comprar menos” na cabeça sempre que vou a uma loja ou supermercado. Vivemos rodeados de tralha – em todos os sentidos, incluindo ruído e preocupações do dia a dia que ocupam demasiado espaço na nossa cabeça – e razões pessoais, ambientais e ideológicas levam-me a sentir que menos é efetivamente mais, na vida.

Desde que passámos pelo confinamento dei por mim a questionar a minha própria lógica. Enquanto milhares de padeiros partilhavam nas redes sociais o pão que tinham começado a fazer em casa, padarias que se mantinham abertas desesperavam por clientes. À medida que mais de um milhão de trabalhadores mergulhava no desemprego ou no omnipresente jargão do lay-off, sentia que ir a um café ou voltar ao cinema começava a ter contornos sociais.

“#Tu Podes – visita muito por pouco” é a mais recente campanha do Turismo de Portugal, em vigor entre 5 de outubro e 15 de dezembro, e tem como objetivo financiar descontos que restauração, alojamento, transportes e cultura venham a oferecer aos clientes. É a tentativa desesperada de estimular a procura interna e dar um balão de oxigénio a setores esmagados pela pandemia.

Claro que a crise nos deveria levar também a repensar a economia, o que coletivamente não estamos a conseguir fazer. Procuramos as mesmas receitas para combater novos problemas e corremos o risco de estar a repetir erros. Temos, ainda assim, escolhas individuais ao nosso alcance. A possibilidade de decidir que produtos consumimos, que locais frequentamos, que trajetos traçamos nos momentos de lazer e, sobretudo, com que atitude nos cruzamos com os outros.

Sair para ir a uma esplanada ou ao teatro, manter os planos de viagens e a vontade de nos metermos à estrada não é apenas uma forma de contribuir para que a economia se mantenha viva. Há um alcance íntimo em enfrentar o medo e preservar aquilo que acreditamos que a pandemia não nos pode roubar.

Somos seres em mobilidade e o ato de caminhar sempre representou a oportunidade de nos encontrarmos connosco mesmo e com os outros. O contacto com novos locais, culturas e pessoas dá-nos mundos que nenhuma outra experiência pode substituir.

Ainda é cedo para perceber o que a covid vai mudar em nós. Se alterará a forma de nos cumprimentarmos, se nos tornará mais desconfiados, se nos fará pensar duas vezes antes de viajarmos para novas latitudes. Seja como for, nenhuma restrição nos impede de continuar de mente aberta, disponíveis para o tanto que existe por ver, saborear e conhecer. Essa é uma porta que nenhum vírus pode fechar. Só o da inércia.




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