Crónica de Dora Mota: Vamos ser viajantes em vez de opressores

Restaurante de Tormes, localizado na Fundação Eça de Queiroz. (Fotografia: Rui Manuel Ferreira/Global Imagens)
Tal como Jacinto, o protagonista de “A cidade e as serras”, de Eça de Queiroz, devemos perder a nossa bagagem para sermos capazes e dignos de apreciar os outros lugares.

Jacinto acumulou Civilização e, quando faz a transição da cidade para as serras, vê-se bruscamente despojado dela. Fica sem bagagem e dá por si a viver a aspereza de não poder cumprir os seus hábitos, com os seus apetrechos e os seus rituais. Tem que vestir roupa grosseira e jantar comida alheia à sua dieta. Porém, poucas horas passam desde o choque até ao momento em que o protagonista do imprescindível livro “A cidade e as serras”, de Eça de Queiroz, começa a entranhar os prazeres da ausência da sua Civilização.

Afundado “em fartura e tédio”, acaba por preferir as serras à cidade – e esquecer-se da multidão de objetos e rituais que consistiam para ele essa dita Civilização. E isso começou quando ele “bebeu da água nevada e luzidia da fonte, regaladamente, com o beiço na bica”, cobiçou a farta horta e as cerejas na árvore. Quando descansou os olhos na paisagem, “mergulhou a face no aroma dos cravos”. E teve um ponto alto na primeira garfada que deu no famoso arroz de favas de Tormes… quando Jacinto nunca gostara de favas.

O fidalgo declarou estar com uma fome que o rasgava desde um passado sem fundo. “Há anos que não sinto esta fome”, exclamou. Vale a pena voltar a este livro cativante e delicioso, que também se lê com garfadas gulosas, tal como Jacinto atacou o arroz de favas. Para o que venho aqui dizer, porém, tanto faz se o viajante vai da cidade para as serras ou o contrário – o essencial é que se liberte da sua carga em cada viagem, e aceite o que essa viagem lhe dá.

A personagem de Eça somos todos e cada um de nós. Todos devemos deixar para trás a nossa bagagem de conforto e tédio – a nossa Civilização – para vestir a aspereza da roupa alheia. Para estarmos prontos e dignos, para saborear os arrozes de favas que nos apareçam pelo caminho. Antigamente, viajar era ir de alma aberta à novidade, à surpresa, ao imprevisto – e ao Outro. Os viajantes lendários eram pessoas aventureiras, que corriam riscos, incluindo o de ficar despojadas das suas posses.

Nos dias e nos instagrams de hoje, leva-se para as viagens uma mala carregada de expectativas e um bilhete com entrada para vários estereótipos. E o mercado turístico global encarrega-se de nos fazer acreditar que temos razão em levar toda essa bagagem. Não temos – e esta atitude está a destruir ecossistemas de modos de estar como o plástico está destruir os oceanos. É uma forma de opressão cultural. Quem disse que temos o direito de pedir a um lugar que seja outro, que se transforme, para cumprir um protocolo globalizado de bem receber? E quem disse que esse protocolo está certo? Onde se tornou lei que devemos ser tratados nos Açores como somos em Lisboa? Isto não é um exemplo à toa: eu já assisti ao esforço de açorianos para tentar ser quem não são, mas o turismo internacional espera que sejam. Isto não se faz aos Açores – eu quero ir lá e perder-me na música do falar micaelense e deixá-los ser o povo doce e generoso que são. Também não quero que, no Porto, contenham os modos tripeiros, nem que no interior do país peçam desculpa por não terem “tudo”. Vamos questionar a nossa Civilização e ser viajantes, em vez de nos tornarmos opressores.




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