Crónica de Carina Fonseca: Ama a tua rosa

(Fotografia: Maria João Gala/Global Imagens)
Na pele de Ricardo Reis, Fernando Pessoa escreveu: “Ama as tuas rosas”. São únicas no Mundo, acrescentaria O Principezinho. É bom gostar do que se tem, perceber que uma casa pode ter rodas, há segurança no movimento e um diário da gratidão escreve-se por dentro.

Em criança, fazia muitas vezes um exercício: se pudesse escolher uma destas casas, qual seria? E punha-me a medir os prós e os contras de cada uma. Continuo a fazê-lo hoje. Esta é bonita, mas demasiado grande, não quero passar a vida a limpar. Esta tem um terraço maravilhoso, posso pôr lá uma cama de rede. Esta tem um quintal que permite ter cães à solta (óbvio) e árvores de fruto. Também desenhava moradias ao pormenor – inocentemente, pensava que ter uma casa com fundações, e à nossa medida, era algo natural, que vinha com o tempo. Disso já me deixei.

Noutro dia, ao olhar para o meu carro, estacionado, ocorreu-me que é o que tenho de mais parecido com uma casa. Enterneci-me diante desse bem móvel que via como meramente utilitário, mas é, afinal, uma couraça protetora que me transporta a mim, aos meus animais e às minhas coisas, num vaivém incessante. Talvez haja aqui uns resquícios de Marie Kondo – só que, em vez de agradecer aos objetos o serviço que me prestaram, antes de os deixar ir, senti-me subitamente grata ao carro por me deixar ir – onde quero, quando preciso.

Nesse mesmo fim de semana, reapaixonei-me pela Coimbra natal. (Acontece muitas vezes. É uma relação de altos e baixos, como talvez sejam todas. Há alturas em que preciso de um tempo, outras em que sabe mesmo bem revê-la. Nunca houve um dia em que não lhe reconhecesse beleza.) Continuando: era o dia da cidade, 4 de julho. Depois de ir apanhar sol na Figueira da Foz – um clássico -, voltei a Coimbra a tempo do primeiro Festival de Sopas da Rua Direita, na Baixa. Uma sopa de peixe deliciosa e “Grândola, Vila Morena”, de Zeca Afonso, a passar num dos restaurantes aderentes deixaram-me mais sensível aos encantos da urbe anoitecida: um pormenor numa fachada, um largo escondido, um pequeno jardim. Foi como um diário da gratidão não escrito, mas pensado, a fazer a vida mais leve.

Estava já no Miradouro António Nogueira, que oferece um postal menos gasto do casario e da Universidade lá no cimo, quando soube claramente que se reacendera a chama por Coimbra. Fiquei ali a olhar. Não eram saudades, que estou bem onde estou e visito o ninho regularmente. Era o reconhecimento de que aquela é a minha rosa, uma rosa de muitas faces, envolvendo família, amigos, amores, memórias.

Do livro “O Principezinho”, de Antoine de Saint-Exupéry, costuma reter-se que “só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos”. Eu sempre gostei da imagem da rosa. Diz a personagem principal perante um jardim repleto dessas flores: “Claro que, para um transeunte qualquer, a minha rosa é igual a vocês. Mas, sozinha, é muito mais importante do que vocês todas juntas, porque foi ela que eu reguei. Porque foi ela que eu pus debaixo de uma redoma. Porque foi ela que eu abriguei com o biombo. Porque foi a ela que eu matei as lagartas (menos duas ou três, por causa das borboletas). Porque foi a ela que eu ouvi queixar-se, gabar-se e até, às vezes, calar-se. Porque ela é a minha rosa“. E anda connosco, mesmo quando saltitamos entre planetas.




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