Crónica de Ana Costa: Os sabores das memórias que nos enchem o coração

(Fotografia: Pedro Correia/GI)
A avó Maria não amava a cozinha, mas cozinhava com amor, tempero copioso que se sentia a cada garfada. E de prato em prato, foi enchendo a nossa gaveta das memórias com sabores deliciosos.

Há sabores inesquecíveis – por bons ou maus motivos -, daqueles com o poder de gravar na memória certos momentos, lugares e até pessoas. De cada vez que se provam são capazes de despertar lembranças que se achavam perdidas. A eles – os sabores – juntam-se aromas, e o quadro vai ganhando forma e movimento no plano da consciência. Pintam-se imagens nítidas de tempos embrulhados no rebuliço das inquietações quotidianas e empurrados para as profundezas da memória.

Há sabores, os bons sabores – falemos desses e não dos outros -, que são como viagens no tempo, pejadas de uma nostalgia agridoce de que se quer sempre mais uma colherada. Pedaços de vida, de emoções, de experiências.

Há sabores a que queremos voltar vezes sem conta, porque nos enchem o coração: as sandes de bolacha Maria com marmelada e queijo Limiano (da bola) dos lanches de outono, quando já se alinhavam malgas do tal doce à janela embaciada (a pedir desenhos a dedo); a doçura das uvas americanas durante as vindimas que deixavam o pátio em cimento sarapintado de tons violeta, a ramada despida e o cheiro a mosto a fermentar na adega, alvoroçada até altas horas da noite.

Sob aquelas videiras, naquela casa, conheci os sabores mais doces que alguma vez provei. O prato de aletria ainda quente a que a avó Maria se dedicava nos preparativos natalícios – ou sempre que algum neto cobiçava um miminho -, debruçada sobre a panela de onde saía um aroma a canela, limão e mel que inundava a cozinha de tijoleira alaranjada; as peras carnudas da pequena árvore no jardim, curvada de velha e pelo peso dos frutos, assadas lentamente até a pele ficar caramelizada, com uma fórmula secreta à base de vinho do Porto, que mais ninguém consegue replicar.

A avó Maria não amava a cozinha, mas cozinhava com amor, tempero copioso que se sentia a cada garfada. Dedicava tempo ao tempo que nos era precioso, a infância. E, de prato em prato, foi enchendo a gaveta das memórias dos seus pequenos rebentos com sabores deliciosos. Que hoje nos fazem olhar para trás com carinho e saudade. Nunca mais uns rojões tiveram sabor igual – atrevo-me a dizer que seria o único prato que me faria voltar a comer carne -, nunca mais as pataniscas entraram para a lista dos petiscos preferidos ou um prato de sopa foi tão reconfortante, e os dias tão longos que só o relógio de corda na parede dava conta do avançar das horas.

Por esse motivo e tantos outros, a todas as “avós Marias” por esse Mundo fora (a minha em especial) que fazem as mais doces recordações: obrigada! É por essas deliciosas lembranças que neste novo ano resolvo dar tempo ao tempo, ao meu e ao dos que me rodeiam. Tempo para recordar e criar novas recordações, atreladas em sabores inesquecíveis, dos bons, daqueles que me encheram a memória e o coração de alegria. Afinal, é esse o ingrediente de que são feitos os melhores momentos da vida.




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