Crónica de Ana Costa: Cozinhar para amar os outros

(Fotografia: DR)
Cozinhar é tanto um ato de amor como é, para muitos, uma forma de sustento. Cabe-nos agora retribuir esse amor sentando-nos à mesa e deixando que nos encham o prato de aconchego.

Há dias, durante uma reportagem num restaurante, ouvi uma frase que me soou familiar. Algo do género: “Cozinhar é uma maneira de amar os outros”. E fiquei a mastigá-la, em parte seduzida pelo romantismo daquela ideia. Reconhecia-a, comprovei mais tarde, de um dos contos d’O Fio das Missangas, de Mia Couto, e à primeira oportunidade atirei-me de volta ao livro, que sai com frequência da prateleira. quando procuro uma leitura mais breve. Erro que repito irremediavelmente, e de todas as vezes acabo enredada nos bordados poéticos que Couto fabrica em forma de prosa.

Já para o final, há um capítulo que nos apresenta a Vovó Ndzima, inquietada com a viagem iminente do neto – o narrador da história – à grande cidade, e que por essa razão o enche de perguntas: onde ficará ele hospedado, quem lhe fará a cama, e quem lhe fará a comida?

É então que, na voz do narrador, Couto diz assim: “Cozinhar é o mais privado e arriscado acto. No alimento se coloca ternura ou ódio. Na panela se verte tempero ou veneno. Quem assegurava a pureza da peneira e do pilão? Como podia eu deixar essa tarefa, tão íntima, ficar em mão anónima? Nem pensar, nunca tal se viu, sujeitar-se a um cozinhador de que nem o rosto se conhece. ‘Cozinhar não é serviço, meu neto’ disse ela. ‘Cozinhar é um modo de amar os outros’.”

Achei de imediato a ternura no dizer dessa mulher que imagino de rosto enrugado e simpático, e recordei a avó de que já aqui falei, autora das memórias mais deliciosas que tenho da infância.

Mais adiante, percebemos que o autor está a mergulhar-nos num tema bem mais duro, a solidão nos idosos, assunto que temos visto agravado pela pandemia e que dá pano para mangas.

Mas continuo a regressar às palavras iniciais da Vovó Ndzima, também pertinentes nestes tempos atribulados. Se cozinhar é um ato de intimidade, e não devendo ser tarefa deixada ao desbarato, resta-nos procurar conhecer e reconhecer os cozinheiros e cozinheiras que o fazem com tão bom desempenho por esses restaurantes fora. Esses a quem dizemos “fez-me lembrar a comida da minha avó” ou “da minha mãe”, em jeito de validação de uma cozinha feita com amor. Para essas pessoas, mesmo que não seja um serviço, cozinhar é um trabalho, um sustento, e cabe-nos agora retribuir esse amor deixando que continuem a fazê-lo. Sentemo-nos à mesa e deixemos que nos encham os pratos de aconchego.




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