Crónica de Luísa Marinho: Ah! Todo o cais é uma saudade de pedra!

(Fotografia de Artur Machado/Global Imagens)
O Porto de Leixões continua a exercer em mim grande fascínio. Tal como as cidades portuárias, pontos de partida e chegada, com inevitáveis angústias e desejos.

Atravessando a Avenida Engenheiro Duarte Pacheco, em Matosinhos, a paisagem não só ajuda a contar uma história desta cidade vizinha do Porto, como conta também um pouco da minha história nesta cidade. De um lado, está o Porto de Leixões com os seus armazéns, cargueiros, guindastes robustos. Do outro, uma rua de casas modestas e restaurantes de peixe. A determinada altura, passa-se o Mercado Municipal, com a sua arquitetura modernista de betão, com as linhas retas e uma abóbada central altiva em perfeita harmonia. Do outro, a ponte móvel sobre o rio Leça une duas realidades.

A determinado momento, uma barreira de contentores vermelhos mostra em letras garrafais versos da “Ode Marítima”, esse poema de furor épico do não menos épico engenheiro Álvaro de Campos, que além de heterónimo do Fernando Pessoa, era assumido por este como um alter ego real, com uma vibrância própria, uma energia que o Pessoa ansiava e não conseguia em nome próprio (vá-se lá perceber porquê…). Todas as vezes que passo por Leixões, aquela paisagem remete-me para muitos anos atrás. Anos de infância em que durante algumas tardes fazia companhia ao meu pai, que ali trabalhou várias décadas. Memórias muito vagas – um ambiente de escritório, com um certo cheiro a tinta de carimbos, o barulho da máquina de escrever já elétrica, um sofisticado apara-lápis que se prendia à secretária e funcionava à manivela, tudo dentro de uma sala-aquário construída no meio da doca em paredes de vidros espelhados, e que muito provavelmente já não existe.

Lembro-me também do impacto que tinham em mim os enormes contentores coloridos geometricamente empilhados que teriam já corrido mundo. Hoje, lembram-me os quadros de Mondrian e as máquinas do porto as pinturas futuristas, já sem aquele movimento – real e abstrato – de início de século, quando se ansiava um futuro sem medos. A ode deste “engenheiro sensacionista”, hedonista sem remorsos, reflete também o terror humano da solidão: “Ah, todo o cais é uma saudade de pedra! / E quando o navio larga do cais / E se repara de repente que se abriu um espaço / Entre o cais e o navio,/ Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente, / Uma névoa de sentimentos de tristeza / Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas”.

Talvez pelo tanto que dizem sobre o mundo e as suas voltas, as cidades portuárias continuam a exercer em mim um grande fascínio, de um romantismo quase tosco. Olho para um cais ou para um navio cargueiro na linha do horizonte e “dentro de mim um volante começa a girar, lentamente”.




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