Entrevista a Hélder Sousa: «As pessoas olham para a comida como uma coisa desenhada»

Trocou a produção de teatro por gerir o restaurante que havia ao pé de casa e, aos poucos, deixou de vez a antiga vida para só pensar em comida. Mas com a missão de resgatar da globalização as partes menos nobres, do bucho ao rabo de boi, para manter vivos os sabores tradicionais. N'O Antigo Carteiro, pequeno restaurante em Lordelo do Ouro, Hélder rema contra a maré.

 

Porquê este compromisso com a comida antiga?
É o tipo de comida que se fazia em minha casa e que eu gosto de comer, ligada à terra. Mais do que antiga, acho que a palavra é tradicional. N‘O Antigo Carteiro, procuramos ingredientes que sejam menos nobres ou estejam de alguma forma em desuso porque, por necessidade, temos que começar a olhar para outras formas de nos alimentarmos com prazer. Esta exuberância que está agora na moda, com produtos internacionais disponíveis o ano inteiro, como se crescessem na nossa horta, é um bocado absurda. E faz com que se perca a memória dos sabores sazonais.

Como nasceu o lema “Comida dos pés à cabeça”?
Com esta moda gastronómica, as pessoas começaram a olhar para a comida como uma coisa desenhada, que só tem partes nobres. E as partes menos nobres, como os rabos, os pézinhos, as orelhas, essas coisas, são desprezadas. Quem ainda faz isso são os restaurantes antigos, onde senhoras de 60 anos fazem as feijoadas como deve ser. Mas é nessas partes dos animais que o sabor está todo e é um desafio transformá-las em comida para pessoas com hábitos urbanos.

É esse o princípio da carta?
É uma solução de compromisso com o processo tradicional e com os ingredientes, e com tornar isso mais atrativo visualmente sem deixar de ser comida simples. Os nossos pratos têm quatro ou cinco ingredientes, como o rabo de boi com esmagada de batata e agrião. Usamos ervas silvestres, porque no Alentejo ou no Minho basta cheirar o ar para perceber a que vai saber a comida. Num restaurante pequeno como este, é possível respeitar essa sazonalidade com algum critério.

Como foi pesquisar essas receitas?
Sou produtor de teatro, a minha experiência com comida era comer. E alguma teoria, com leituras do Eça de Queiroz, do Aquilino Ribeiro, do Júlio Dinis e dos livros de Maria de Lurdes Modesto, que estão em todas as casas. Há um ano que tenho cá o Rui Oliveira, antes dele falhei três chefs. O Rui é jovem, mas aprendeu a cozinhar com os avós, tem uma ligação à cozinha familiar e tradicional, e para além disso é um chef treinado. E gosta de me acompanhar nestas pesquisas, de ir falando com as vizinhas daqui, de fazer estas investigações históricas nos livros.

O que fez a massificação do turismo à comida do Porto?
Não fez muitas coisas boas, mas a verdade é que não há restaurantes maus no Porto, a comida é genericamente boa… mas também é muito parecida! Chegaram alguns olhares frescos de pessoas novas, mas ao mesmo tempo há esta uniformização de espaços. A resposta ao turismo foi tornar o Porto uma cidade contemporânea, onde é preciso seguir a moda dos vinhos, da comida internacional, ter estes bares. Felizmente, este lado da cidade está preservado disso e ainda temos aqui uma referência cultural de sabores. Penso muitas vezes que este largo [Largo do Ouro] é uma espécie de oásis com lugares que fizeram sempre a comida da mesma maneira, como a Piedade, a Tia Aninhas…

Este manifesto pode ir ainda mais longe?
Eu gostava de ser ainda mais radical, fazer comida ainda mais intensa e mais simples. A minha ambição é poder um dia dizer de quem chegam todos os ingredientes que servimos aqui. Gostava de pôr uma cara em todos os ingredientes, o que no século XXI é praticamente impossível.

 

Uma carta peculiar

Bucho, miúdos, joelho de porco, bochecha de vitela ou rabo de boi são alguns dos ingredientes que compõem a carta d’O Antigo Carteiro, que muda sazonalmente. O restaurante, assim chamado por ter ocupado um antigo posto de correios, fica na rua Senhor da Boa Morte, 55, junto ao Largo do Ouro, em Lordelo do Ouro.




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