Alexandra Santos, do Festival da Comida Esquecida: “Havia quase uma negação das papas de milho”

Alexandra Santos, da QRER - Cooperativa para o Desenvolvimento dos Territórios de Baixa Densidade, que organiza o Festival da Comida Esquecida. (Fotografia: Carlos Vidigal Jr. / Global Imagens)
Chícharos, catacuzes, sardinhas garnentas… Estes são só alguns dos alimentos que a QRER - Cooperativa para o Desenvolvimento dos Territórios de Baixa Densidade tem procurado reavivar, através do Festival da Comida Esquecida, no Algarve. Alexandra Santos, da organização, põe os pratos na mesa. E aponta as razões do seu quase desaparecimento - dos processos lentos de confeção ao fantasma da pobreza.

Como surgiu a ideia de criar o Festival da Comida Esquecida, em 2019?

Queríamos algo que fizesse sentido numa lógica de desenvolvimento do interior e não fosse um evento gastronómico normal. Surgiu-nos esta ideia do resgate de comidas e receitas, e encontrámos um mundo (risos).

Pode dar exemplos desses alimentos que as populações locais consumiam e foram desaparecendo da mesa?

Um exemplo flagrante é o chícharo, uma leguminosa muito difícil de adquirir. Há coisas que são menos vulgares por uma questão de prática. [Por exemplo,] os milhos fervidos ou aferventados de Monchique são feitos com cinza. Os pratos de cozinha lenta não se coadunam com o estilo de vida atual. Muitas vezes, associamos aquelas comidas às nossas avós porque elas tinham um tempo e uma dedicação diferentes à cozinha. Atualmente, não temos capacidade para estar metade do dia à volta da cozinha.

Havia quase uma negação das papas de milho, apesar de agora estarem a voltar em força. Porque era uma comida muito associada à pobreza.

Em 2019, foi comunicado que alguns alimentos tinham caído em desuso também por serem associados à pobreza e à ruralidade.

Havia quase uma negação das papas de milho, apesar de agora estarem a voltar em força. Porque era uma comida muito associada à pobreza. Esta questão de substituirmos algumas comidas também tem a ver com a sociedade, no coletivo, demonstrar uma capacidade de poder. Antigamente, a nobreza comia muita carne para se diferenciar da plebe, que não tinha acesso a ela.

Naquela altura, também davam como exemplos de alimentos em desuso os catacuzes (verduras que crescem espontaneamente nos campos), as sardinhas garnentas…

Com o tempo, desvinculámo-nos dos processos de apanha. Isso também implica algum conhecimento, porque muitas ervas são semelhantes umas às outras, é preciso saber distingui-las. E houve uma quebra de vínculo geracional. As pessoas deixaram de estar ligadas ao campo e não houve essa necessidade de transmissão mãe-filho. As sardinhas garnentas eram guardadas em cestos, com camadas de sal. Depois dessalgava-se, um pouco como fazemos com o bacalhau, e grelhava-se. Os processos de conservação alteraram-se radicalmente, sobretudo depois do aparecimento do frigorífico.

No festival, já houve piqueniques de charme inspirados nos dos anos 1930/40, jantares sensoriais e percursos com paragem em hortas. Em que ponto está a edição deste ano?

Em princípio, irá haver [festival]. Ainda não sabemos em que datas. Temos ideias para novos eventos, que estão a ser desenhados.

(Fotografia: Carlos Vidigal Jr. / Global Imagens)


Adesão em alta

O Festival da Comida Esquecida valeu a pena, desde logo, pela curiosidade que gerou em relação a alimentos perdidos na memória, defende Alexandra Santos, frisando o papel daquele certame na educação, na relembrança e na preservação de um património em risco de desaparecer. Nas edições passadas, houve eventos esgotados e listas de espera. É um ambiente de convívio, com os participantes a partilhar histórias e receitas de família.


Tengarrinhas

As tengarrinhas, também conhecidas como cardo-de-ouro, estão agora a brotar nos campos, em Silves, de onde fala Alexandra Santos. Depois de tirar todas as folhas, comem-se como se fossem espargos – com ovos mexidos, por exemplo.




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