Palmela: sabores, património e natureza nas encostas da Arrábida

Está vibrante a serra que arrebatou o poeta Sebastião da Gama. Eternamente ligadas, Arrábida e a vila de Palmela mostram por que razão esta terra é mais que queijo, pão, vinho e um castelo. E natureza preservada e arte urbana a lembrar que ali estão instaladas duas das maiores indústrias nacionais.

Do alto das muralhas vê-se a enorme planície, o Tejo e a costa de Lisboa. Do outro lado, Setúbal, o estuário do Sado e Troia. Construído pelos árabes entre os séculos 8 e 9, o Castelo de Palmela foi desde sempre disputado pela sua localização. D. Afonso Henriques conquistou-o em 1147, mas perdeu-o pouco depois e só em 1165 passou definitivamente para a coroa portuguesa. Com interesse em consolidar o território, D. João I mandou ali fixar a Ordem de Santiago, incontornável para a história da vila, e desse tempo ficou o castelo tal como o conhecemos.

Todo este património é dado a conhecer nas visitas guiadas promovidas pelo Turismo da Autarquia no castelo, com passagem pelo museu municipal de arqueologia e pela Igreja de Santiago, que acolhe o túmulo de D. Jorge, o último mestre da ordem. As 100 mil pessoas que visitam este monumento nacional talvez não tenham consciência do rico património que encerra.

Cláudio Belchior cedo reconheceu o potencial do lugar, enquanto organizava um casamento na pousada do castelo. Abriu a porta da Taverna Bobo da Corte há seis anos e conta, satisfeito, que o negócio baseado em petiscos tem corrido bem. Quem se senta à mesa, como nas tavernas medievais, pede amiúde chouriço assado, gambas ao alho e choco frito, acompanhados de vinho a jarro. Aos jantares o espaço está quase sempre cheio, pelo que é preciso reservar mesa com antecedência.

Fora da muralha, o caminho desce para o menos concorrido Centro Histórico, que nasceu de um repovoamento feito “à sombra do castelo, fator de proteção”, explica a guia Cristina Mesquita. Mais tarde, as ruas começaram a crescer perpendicularmente, dando lugar a quarteirões ordenados e casas mais nobres. Esse traçado é bem visível da esplanada do Culto Café, onde se pode fazer todas as refeições, ou só beber um copo, num bom ambiente. Abaixo, na Rua de Nenhures, veem-se 30 silos islâmicos medievais (usados para guardar cerâmicas, metais e moedas) e um forno de cerâmica, no mais importante achado muçulmano fora das muralhas.

O Culto Café tem vista para a vila de Palmela. (Fotografia de Leonardo Negrão/GI)

Dormir no sopé do castelo

No Centro Histórico, o antigo honra-se com o novo. Na rua do pelourinho, ao lado da Igreja da Misericórdia, nasceu há dois anos o Porta da Arrábida Hostel & Suítes, num hospital do século XVII. Constantino Modesto, empresário palmelense, preservou os azulejos e cantarias de pedra e deu-lhe um ambiente de hotel, sobretudo nas 12 suítes espaçosas distribuídas por três pisos. As 36 camas em camaratas, mais acessíveis, também não descuram o conforto, pois têm casas de banho privadas, luz de leitura, cacifos e loiças para cada hóspede. São de explorar os terraços soalheiros, com vista para o castelo e para Lisboa, assim como as salas de jogos e leitura.

À falta de restaurante, é descer a rua até ao cinquentenário Retiro Azul, perto do Chafariz D. Maria I. “Tinha muita procura. As grandes especialidades eram o frango assado, as tortilhas de camarão e os filetes de pescada”, conta Óscar Fernandes, 52 anos. O restaurante esteve fechado seis anos, e nos últimos três, Óscar tem lutado para o relançar, fazendo-se valer da experiência como chef nas cozinhas das Pousadas de Portugal e em Angola. A mulher ajuda-o na cozinha e o filho na sala, decorada com painéis artísticos iluminados. Da carta, as lascas de bacalhau com broa, o polvo à lagareiro e a coxa de pato com legumes são capazes de cativar. Ao almoço há buffet, tudo conjugado com os bons vinhos da região.

O Chef Óscar Fernandes está à frente do restaurante Retiro Azul. (Fotografia de Leonardo Negrão/GI)

Ruínas na serra

Mas nesta terra há mais tesouros além das vinhas, que o diga José Cunha ao fim de tantos anos longe dos Açores. Formou-se em eletrónica e telecomunicações, mas a vida empurrou-o para Setúbal, para a serra, e tornou-se cofundador da Biotrails, a empresa que está a organizar o primeiro festival de caminhadas da Arrábida, sob o mote do património arqueológico (27 a 29 de março). Já há centenas de inscritos e percursos esgotados.

Quem percorrer a serra do Louro, que integra duas das caminhadas, já chega com um ligeiro atraso de três mil anos (calcolítico). “Os primeiros povoados fixaram-se aqui por via da agricultura e da domesticação de espécies”, explica José, com os moinhos de vento nas suas costas. Adiante, surge um cubo de madeira em posição contemplativa sobre Castro de Chibanes, uma fortificação complexa para a época. É um dos oito miradouros que fazem parte do projeto Serra do Louro Okubo.

A Biotrails organiza caminhadas pela natureza e para observação de aves. (Fotografia de Leonardo Negrão/GI)

José Cunha continua a caminhada pela alcaria do Alto da Queimada – onde existiram casas ligadas à agropastorícia, caça, tecelagem, recolha de âmbar e possivelmente pesca – e chama a atenção para um banco de ostras fossilizadas numa rocha com 200 milhões de anos, quando a serra era leito oceânico. A flora é outro dos atrativos: só na Arrábida conhecem-se 30 espécies de orquídeas, espalhadas pela vegetação mediterrânica.

 

Grutas com 4500 anos

Do outro lado da serra espraia-se a aldeia de Quinta do Anjo, com cinco mil habitantes. A freguesia, porém, está longe de ser pequena, morada que é da Coca-Cola European Partners e da Volkswagen Autoeuropa, duas das maiores empresas da Península de Setúbal. Esta fusão do que é rural e industrial, aldeia e urbanização, ajuda a enquadrar as pinturas da MAU – Mostra de Arte Urbana que deram nova vida a casas abandonadas e empenas de prédios.

Pedro Amado faz questão de as mostrar nos passeios da Nature Affairs, a empresa com que leva visitantes a descobrir o património natural, cultural, paisagístico e gastronómico de Palmela e da Península de Setúbal. “É ir à natureza das coisas”, diz, momentos antes de estacionar o jipe ao pé das Grutas Artificiais de Quinta do Anjo, onde o presidente da Junta, António Mestre, formado em Antropologia, já está pronto para fazer a visita.

O que se vê escavado na pedra calcária são quatro hipogeus, locais de celebração fúnebre usados durante 1500 anos. “A entrada dos corpos era feita por aqui”, aponta o presidente para a abertura oval na rocha, sobre a qual assentaria uma laje. “Homens e mulheres eram enterrados no mesmo sítio, camponeses ou xamãs, ou seja, não havia uma distinção hierárquica”. No local foram descobertos pedaços de cerâmica campaniforme (em forma de sino ou campainha), exclusiva de Palmela, e outros vestígios que provam que na altura havia trocas comerciais com o Mediterrâneo.

O presidente da junta de Quinta do Anjo ao pé de um hipogeu. (Fotografia de Leonardo Negrão/GI)

 

A Arrábida no copo

De regresso à aldeia, é tempo de conhecer A Casa do Arrabidine, instalada numa antiga adega do século XVIII. “Este projeto familiar foi ambicionado e realizado pelo meu avô, Emídio Fortuna”, diz Sofia Fortuna, diretora-geral da empresa, a apontar para um retrato do avô, a preto e branco, dentro de uma vitrina. Ao lado, perfilam-se autênticas relíquias de garrafas de licor, ginjas e aguardentes, comercializados hoje com as marcas Arrabidine, Conheço-te de Ginjeira e Bicabagaço. O licor é produzido há 70 anos na família.

A relação do Arrabidine à Arrábida terá quatro séculos. A receita (ou “fórmula”, como lhe chamam) terá tido origem num tónico digestivo e antissético desenvolvido pelos frades do Convento da Arrábida a partir de vários botânicos. Quando as ordens religiosas foram extintas, em 1834, um desses frades foi acolhido por uma família influente no Seixal, a quem terá oferecido o tónico. A partir daí, essa família começou a fazê-lo como licor digestivo, aquele que Emídio Fortuna comprou (fórmula, garrafas e tonéis) em 1950.

Apostados em manter o “compromisso” assumido com a história das bebidas espirituosas da região, em 2013 Sofia e o pai (mestre licorista) relançaram a empresa com um olhar sobre o futuro. Recuperaram o Arrabidine com o formato da garrafa original, baixaram o volume de álcool do Bicabagaço – “por uma questão de perceção do sabor” – e retomaram a produção de ginja, feita com ginjas galegas colhidas à mão na Serra do Louro. As bebidas estão à venda na loja e podem ser provadas com queijo, compota e pão. “Queremos que a Arrábida se revele no copo”. E conseguem.

Já o Espaço Fortuna – Artes & Ofícios ambiciona ser uma “janela para a Arrábida”, um centro de lazer e natureza por excelência. Conjuga oficinas de azulejaria, olaria e cerâmica com um restaurante, bar, sala de exposições e espaços para eventos e é residência de dois artistas da região. Está aberto a visitas.

Uma das portas dá acesso ao restaurante Flavors – Outros Sabores da Nossa Terra, onde Pedro Castelo Branco queria fazer algo diferente do que havia nas redondezas, diz, momentos antes de chegarem à mesa queijo fresco e fatias de pão artesanal de Quinta do Anjo. Na memória ficam o caril de gambas e camarão e a alheira, ilustrativos de uma carta inspirada no Oriente e na comida portuguesa. Só o melhor tem lugar nas encostas de Palmela.

 

As fogaças são o doce típico mais antigo de Palmela. (Fotografia de Leonardo Negrão/GI)

A tradição da bênção das fogaças

“As fogaças são o doce mais antigo de Palmela”, conta o pasteleiro Nuno Gil, da Confeitaria
de São Julião. Antigamente, eram feitas por devoção a Santo Amaro (celebrado a 15 de
janeiro) como forma de pagar promessas – daí terem formas de animais, braços, pés e cachos
de uvas – e levadas à Igreja de São Pedro, no centro da vila, para serem benzidas e, em parte,
leiloadas. Esta tradição esteve desaparecida 40 anos, mas foi recuperada este ano. As
fogaças, na verdade, são bolos secos, feitos com massa de pão, raspa e sumo de laranja,
açúcar amarelo, ovos, aguardente, banha, farinha, canela e erva-doce. Nuno Gil, 50 anos, é
também o autor de sete pastéis originais, inspirados em produtos como o moscatel, o choco ou
a laranja, que são já parte integrante da doçaria da região.

 

Compras, do castelo ao centro histórico

A Igreja de São Pedro e o Castelo de Palmela são dois dos monumentos que surgem nos
desenhos do designer gráfico Tiago F. Moura. Autor da marca Somewhere – cuja coleção já
abrange Lisboa, Porto, Aveiro, Coimbra, Setúbal e Palmela – abriu esta loja onde vende
dezenas de posters, postais, marcadores de livros e até cervejas da Lx Beer com desenhos
criados por si. “Há quem lhes chame pop-art ou naïf. Eu não sei o que hei de chamar”, admite,
bem disposto. Umas portas ao lado, são produtos regionais que se compram na The Selector
Store, como conservas, licores, vinagres, biscoitos e compota de maçã riscadinha com gin e
zimbro (produto original). Para comprar vinhos da Península de Setúbal ao preço do produtor
há que ir à Casa Mãe Rota dos Vinhos, na vila, que também funciona como posto de
marcação de visitas a adegas e provas de vinho, por exemplo.

 

Algo está a fazer com que o sistema não consiga mostrar a ficha ténica desejada. Pedimos desculpa pelo incómodo.



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