Castro Laboreiro: No planalto à boleia das histórias

A maior freguesia de Melgaço entranha-se na pele com as suas paisagens agrestes, a riqueza natural e os costumes vincados pela serra. É território abraçado pela vizinha Espanha, e percorrê-lo é tropeçar em histórias que atravessam a fronteira.

Há um certo misticismo a cobrir o planalto de Castro Laboreiro. Naquele território de limites esfumados com a vizinha Galiza, o vale e as serras perdem-se de vista, e o olhar enche-se com a vastidão da paisagem. O seu habitante mais ilustre contribui em grande parte para a mística que ali paira. Afinal, nunca se perde a expectativa de ver o lobo ibérico no seu habitat natural, ainda que as probabilidades não sejam favoráveis. “É uma questão de sorte mais do que outra coisa. Já procurei muito o lobo e das vezes que o vi foi a atravessar a estrada, como se nada fosse. Podemos é encontrar mais facilmente excrementos, pegadas e ossadas das presas”, confessa Hélder Rodrigues, um dos guias da Montes Laboreiro. A empresa de animação turística conduz passeios de jipe pela Rota da Pré-História, uma das poucas formas de chegar ao planalto, apenas acessível à população local que ali tenha terrenos e a quem tenha permissão do ICNF – Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, ou através de trilhos pedestres e percursos de BTT.

Ali, já se está em pleno Parque Nacional da Peneda-Gerês, e a fauna, a flora e a paisagem intocada, são tesouros a preservar. Por esta altura, urze e a carqueja ainda pincelam de rosa e amarelo o prado verde, onde volta e meia as cachenas e os garranos dão o ar da sua graça. Com tempo, paciência e alguma sorte, também se vislumbram raposas, javalis, veados, perdizes, milhafres-reais e muitas outras espécies.

 

As nuvens desenham um cambiante de sombras no planalto, e sem contar, o nevoeiro, próprio da altitude – estamos a mais de 1100 metros -, vem de surpresa, a realçar ainda mais a solenidade daquela terra no extremo norte de Portugal. Não admira que os povos primitivos do Neolítico e da Idade do Bronze a considerassem um lugar sagrado.

Ali encontra-se a maior necrópole megalítica da Península Ibérica, e uma das maiores da Europa, com perto de uma centena de dólmens deste e do outro lado da fronteira. Apenas dois daquele monumentos fúnebres pré-históricos estão a descoberto, e os restantes permanecem cobertos pelas mamoas, ligeiras elevações de terra no planalto.

Dólmen no Planalto de Castro Laboreiro (Fotografia: Rui Manuel Fonseca/GI)

 

Mais à frente, a raia seca. Começam a avistar-se os marcos em pedra a delimitar a fronteira, uma linha esbatida, não mais que uma mera formalidade para as povoações que ali convivem há séculos.

“As populações daqui e de lá eram praticamente irmãos, ajudavam-se uns aos outros. Nós escondíamos aqui muitos espanhóis e eles vice-versa”, conta Hélder. O terreno agreste, isolado e de grande extensão, ofereceu as condições ideais para ali se estabelecerem rotas de contrabando e de fuga. Quem fugia do regime franquista, encontrava abrigo na aldeia de Castro Laboreiro e outras povoações da raia, e quem deste lado queria escapar à ditadura salazarista refugiava-se além fronteira.

 

Por onde passavam pessoas também a mercadoria encontrou caminho de entrada e saída do país. “Era sabão, café, chocolate, bacalhau, bens essenciais sobretudo”, esclarece o guia. E serão poucos os habitantes de Castro Laboreiro que não têm familiares ou conhecidos cuja vida os levou pelos caminhos do contrabando. Fernando Pires, de 68 anos, narra o testemunho na primeira pessoa: “Eu cheguei tarde, já não cheguei a tempo do café. O café foi um dos bons contrabandos que houve, dava muito dinheiro”, conta. “Aquilo fazia trabalhar muita gente, muitas famílias viviam à custa do contrabando”.

Foi no transporte de gado que Fernando trilhou aquelas rotas – “lembro-me que os vitelos rendiam seis contos cada um”, recorda -, muitas vezes com a cumplicidade da Guarda-Fiscal, que retirava daí uma fatia.

Hoje, está prestes a celebrar 20 anos do seu Miracastro, hotel e restaurante que construiu na vila serrana. A mulher, Rosa, é quem comanda a cozinha, de onde sai um afamado bacalhau com broa e o tenríssimo naco da pedra – duas das especialidades da casa -, este último nem sempre disponível. É o próprio Fernando quem cria os animais, ou então compra diretamente a produtores locais, selecionando a “melhor que há”, como lhe manda a experiência. É comum vê-lo almoçar ou jantar naquelas mesas, onde recebe como se fosse em casa. Garante boa travessa e bom alvarinho, que copo a copo, vai destravando a conversa, e as histórias. Muitas.

 

Perfil: Fernando Pires

É natural de Ribeiro de Baixo, a aldeia mais a sul de Castro Laboreiro, e aos 17 anos foi para a França, trabalhar na construção civil. A entrada no país foi atribulada: “à saída do comboio, na fila para apresentar o passaporte, separei-me do meu pai e do meu tio e fiquei logo para trás”, conta. Tudo acabou por se resolver, e só regressou a casa aos 24 anos. Ainda na flor da idade, e como outros, deixou-se ir pelos caminhos do contrabando, “esporadicamente”. “Comprei um camião e comecei a fazer uns fanicos por aí, até que um dia chegaram uns contrabandistas a querer que eu fizesse transportes”, diz. Pouco depois, passou a transportar também gado: “o trabalho era pegar nas vacas na fronteira e levá-las a Ponte de Lima, e os vitelos era de cá para lá. Para passar estava sempre um à vigia com os walkie talkies”, recorda. Esteve 10 anos nesse mundo, mas com a abertura das fronteiras tudo acabou. Depois dedicou-se a outro negócio, o hotel e restaurante que começou a construir em 1998. E hoje, guarda com carinho um exemplar de maio de 2004 da revista Evasões, onde teve a surpresa de ver mencionado o seu tão afamado bacalhau com broa.

Fernando e Rosa Pires (Fotografia: Rui Manuel Fonseca/GI)

 

O cão, o castelo e o museu

Do outro lado da rua, também há histórias de sobra. O encerramento temporário das fronteiras devido à pandemia, trouxe algumas peripécias: “ainda na outra semana fomos levar quatro doses de bacalhau à fronteira”, conta Alberto, uma das caras do Miradouro do Castelo.

Foi o primeiro restaurante da vila, com quase 30 anos, ali erguido por Maria dos Prazeres e o marido, António. A vida também os levou para fora do país, e foi, curiosamente, onde se conheceram. “O meu marido foi a primeira pessoa que eu vi quando cheguei a Andorra”, conta Maria. Foi com 19 anos, para trabalhar num restaurante – “não que tivesse necessidade de ir, porque o meu pai andava no contrabando”, confessa -, por lá casou e ficou 15 anos. “Um dia viemos de férias e diz o meu marido, «Aqui é que estava um bom sítio para um restaurante»”. E assim foi.

À mesa chega o cabrito assado, o bacalhau, e o borrego na brasa, e convém guardar espaço para a mousse de chocolate caseira, densa e de sabor intenso a chocolate negro. Uma delícia.

 

O nome do restaurante – também tem alojamento no andar de cima, recentemente renovado – não foi escolhido ao acaso. Das janelas tem-se vista desafogada para as ruínas do antigo castelo de Castro Laboreiro, em tempos uma importante construção de defesa fronteiriça. E agora um incentivo para desmoer o festim na subida até às muralhas. O trilho está bem assinalado, e com vagar, faz-se sem grandes dificuldades.

Pelo caminho, encontra-se a pedra-tartaruga uma das famosas rochas de Castro Laboreiro com formatos curiosos. Havemos de encontrar ainda exemplares em forma de águia, cão e o que mais a imaginação e a perspetiva fizerem ver. E do alto da antiga muralha abre-se uma vista panorâmica sobre a imponente paisagem da Serra da Peneda, agreste, crua e encantadora.

 

De regresso à vila, vale a pena parar no Centro Museológico de Castro Laboreiro, para conhecer um pouco melhor a história e a cultura castreja, desde o traje feminino – ainda hoje usado -, de vestes negras, a simbolizar o luto e a saudade dos maridos e filhos emigrados, ao interior de uma casa típica. Pormenor curioso: antigamente, a cama não tinha pregos. Era sustentada por cordas, para ser mais fácil desmontar e levar em viagem na altura da transumância [ver abaixo].

Já na Casa Fonte do Laboreiro, dois passos adiante, as camas dali não saem. Há sete anos, Armandina Fernandes recuperou a antiga casa que pertencia ao seu bisavô, e transformou-a em alojamento rural, com seis quartos. Manteve o traçado rústico, de paredes em pedra e alguma mobília original, mas com todas as comodidades e conforto. A cozinha tem passagem para um pátio com um pequeno lago e jardim, agradável para uma refeição ao ar livre e em sossego.

Só se fazem ouvir as cabras ou os chocalhos do gado que passa na rua, acompanhado por vezes por um castro laboreiro, a raça autóctone da região, que Sara Esteves se dedica a perpetuar no Canil dos Montes de Laboreiro. Com a ajuda do filho, Filipe Afonso, recusa-se a deixar perder aquela que diz ser uma raça única. De grande porte e pelagem lobeira, os castro laboreiro, são cães dóceis, tradicionalmente usados como guarda de gado. “Por um Castro Laboreiro só é mordido quem quer”, assegura Sara. Aos 81 anos, ainda faz questão de dormir no canil quando há nascem ninhadas, para garantir que mãe e crias têm sempre companhia. Nada a demove. A tenacidade do povo castrejo está-lhe no sangue.

Canil de Castro Laboreiro – Sara Esteves e Filipe Afonso (Fotografia: Rui Manuel Fonseca/GI)

 

De casa às costas
Em Castro Laboreiro ainda prevalece uma tradição antiga de andar com a casa às costas: a transumância. Desde sempre, o povo castrejo habitou parte do ano em terrenos altos e a outra parte em terrenos baixos, em busca da melhor pastagem para o gado e para fugir das temperaturas mais rigorosas. Durante o verão instalavam-se nas brandas, no alto da serra, onde abundam os pastos para os animais, e no inverno desciam para as inverneiras, no vale. Ainda há quem o faça, mas são poucos os exemplos. Por isso mesmo, alguns desses aglomerados habitacionais acabaram por se voltar para o turismo, para evitar o abandono. É o caso da Aldeia de Pontes, uma antiga inverneira desocupada, cujas casas estão a ser recuperadas para alojamento rural.

Aldeia de Pontes (Fotografia: Rui Manuel Fonseca/GI)

 

Veja também:

Melgaço por terra, água e ar: 8 atividades na natureza para conhecer o território

Peneda-Gerês: travessias no interior da serra

 

EVASÕES RECOMENDA

FICAR
Casa Fonte do Laboreiro
Lugar de Vila, Castro Laboreiro
Tel.: 966404311
Quarto duplo a partir de 45 euros (pequeno-almoço opcional)
Casa T6 a partir de 260 euros (pequeno-almoço opcional)

Castrum Villae
Lugar de Vila, Castro Laboreiro
Tel.: 251460030
Web: hotelcastrumvillae.pt
Quarto duplo a partir de 60 euros (com pequeno-almoço)

FAZER
Montes de Laboreiro
Parque de Campismo de Lamas de Mouro
Tel.: 251466041
Web: montesdelaboreiro.pt
Rota da pré-história: desde 35 euros por pessoa

COMER
Miracastro
Lugar da Vila, Castro Laboreiro
Tel: 251 460 020
Web: hotelmiracastro.com
Das 12h00 às 16h00 e das 19h00 às 23h00. Não encerra.
Preço médio: 20 euros

Miradouro do Castelo
Lugar da Vila, Castro Laboreiro
Tel: 251465469
Das 12h às 16h e das 19h às 22h. Não encerra.
Preço médio: 15 euros

VISITAR
Centro Museológico de Castro Laboreiro
Tel: 251465016
Entrada: 1 euro

Canil dos Montes de Laboreiro
Rua Padre Anibal Rodrigues, Castro Laboreiro
Tel.: 251465256



Outros Artigos





Outros Conteúdos GMG





Send this to friend