Arraiolos: as histórias e sabores da vila dos tapetes

Arraiolos: as histórias e sabores da vila dos tapetes
Arraiolos é uma memória viva da História de Portugal e deve a D. Dinis o primeiro foral e a construção do seu castelo com muralha circular, formato raro. Séculos depois, foi morada de D. Nuno Álvares Pereira, 2.º Conde de Arraiolos. Hoje, são o artesanato, a gastronomia e o bem-receber que fazem da vila um lugar cheio de graça, para ficar e conhecer.

O amanhecer na cabana de cortiça é embalado pelo chocalhar das ovelhas que pastam no olival. Dentro desta tela bucólica, viva e perfumada no Alentejo, diz-se «bom dia» ao pastor e esquece-se a rotina da cidade. Aqui reina a tranquilidade do campo. Foi por ela que François Savatier e o companheiro se apaixonaram, há nove anos, quando decidiram deixar para trás uma vida de trabalho nos escritórios de Paris. Na casa onde vivem abriram o turismo rural Villa Extramuros.

A casa é branca, de linhas retas, e foi desenhada pelos arquitetos Jordi Fornells e Rolf Heinemann, da Vora Arquitectura. Vista de fora, engana. Lá dentro, revela-se espaçosa e dá a sensação de se estar dentro de uma revista de design, tal é a profusão de peças que a decora com extremo bom gosto. Entre as que se destacam está uma aparente estante vermelha, que na verdade era o banco de um autocarro marroquino. François comprou-a em Lisboa e teve a ideia de usá-la como prateleira, à entrada, para vender produtos regionais como azeite, utilitários de cortiça e vinhos.

Toda a casa é um deleite para os amantes de design, arquitetura e fotografia e dá vontade de passar longos momentos em cada divisão e no pátio enorme com laranjeiras. Nos cinco quartos do piso superior reina a cortiça, mas a decoração é mais minimalista para não distrair o olhar da paisagem de montado e olival, onde existe uma piscina de «rebordo infinito» com zonas de estar. Foi no meio das oliveiras que, há dois anos, abriram as mais recentes suítes júnior do Villa Extramuros. Tanto a cabana amarela como a vermelha têm 50 metros quadrados, decoração «eco-pop» com materiais ecológicos, artesanato do Alentejo como mantas de Monsaraz e peças de arte e mobiliário dos anos 1960 e 1970. Têm tudo: cozinha, zona de estar, sistema de som, casa de banho climatizada e alpendre com espreguiçadeiras. O pequeno-almoço, variado e saboroso, é servido pelos anfitriões na casa principal, por onde costumam passear-se os seus quatro gatos, mas também na cabana, de onde se avista o castelo e o casario branco e azul de Arraiolos.

O castelo de Arraiolos é dos raros exemplares no mundo com muralha circular. (Fotografia de Orlando Almeida/GI)

Do castelo à origem dos tapetes

A vila nasceu, fisicamente, no castelo. «O documento mais antigo é de 1217, quando D. Afonso II doou as terras da Herdade de Arraiolos ao bispo de Évora. Pediu para se construir o castelo, mas ele só foi construído quase cem anos depois, por D. Dinis.» Mélanie Wolfram domina a História de Portugal quase de fio a pavio e fala sem vestígio de sotaque francês, já cá está desde o final dos anos 1980. Quando terminou o doutoramento em história e arqueologia com uma tese sobre a cristianização primitiva do Alentejo, decidiu criar a Vagar – Walkingtours, em 2013, para dar a conhecer o património, tradições e paisagens do Alentejo. A procura destes passeios – que podem ser de meio-dia ou dia inteiro, no máximo de quatro pessoas – tem sido tanta que entretanto teve de juntar Diane à «equipa», por coincidência também uma francesa encantada pelo país. Não é difícil perceber porquê.

Com «vagar» suficiente para se apreciar a vista do cimo do castelo – cuja muralha circular é única no Alentejo e uma das poucas no mundo –, o percurso a pé continua em direção à vila, para onde a população foi crescendo ao longo dos séculos. A partir do século XVI, a atual Praça do Município tornou-se a praça moderna de Arraiolos, local que na verdade «tinha sido um complexo fabril de tintureiros, para tingir a lã» dos tapetes, continua Mélanie no seu tom apaixonado.

A prova da existência dessa fábrica – montada longe da população, pois a lã era fixada com urina e cheirava mal – só foi descoberta em 2003, quando, durante uma requalificação urbanística da praça, foram destapados 95 fossos na pedra calcária, que serviam para mergulhar a matéria-prima.

A descoberta foi «da maior importância, porque não se encontrou nada parecido em Portugal, o único paralelo foi achado em Marrocos, na medina de Fez».

Os tapetes de Arraiolos têm séculos de história. Hoje em dia são poucas as mulheres que os trabalham a tempo inteiro. (Fotografia de Orlando Almeida/GI)

Terá sido esse o berço dos famosos tapetes de Arraiolos? A história tem um hiato por esclarecer entre o século XV (até onde se crê ter laborado a tinturaria) e o final do século XVI, data do primeiro registo dos tapetes na vila, 1598. «O que se pensa é que, como havia tintureiros em Lisboa, eles terão ido em direção a Arraiolos, onde havia uma comuna muçulmana, quando D. Manuel publicou o édito a obrigar toda a gente a ser católica», sob pena de expulsão do território português, explica Mélanie.

O percurso continua, e a visita ao Centro Interpretativo do Tapete de Arraiolos, instalado no edifício do antigo Hospital da Misericórdia, ajuda a encontrar mais respostas sobre a arte dos tapetes. A exposição mostra a sua evolução técnica e estética, desde os motivos orientais aos europeus e de inspiração local. Depois de um declínio no final do século XIX, as tapeteiras revitalizaram a atividade, mas hoje serão menos de uma dezena as que vivem exclusivamente do ofício, contando-se pelos dedos as lojas que ainda fazem e restauram tapetes. O símbolo identitário da vila é lembrado a cada esquina, com um tapete desenhado em pedra no chão da praça e o Monumento à Tapeteira, inaugurado em 2001, perto da Praça da República.

Petiscar na vila, beber no monte

«Aos fins de semana Arraiolos enchia de turistas nacionais por causa dos tapetes», lembra Maria da Luz, também ela antiga operária de uma fábrica. Quinze anos depois de trocar os novelos de lã pelo avental, para cozinhar petiscos para eventos, está a ajudar o filho Duarte, de 27 anos, na cozinha do República do Petisco. «Tem sido uma surpresa, porque nós abrimos para atrair o cliente local, que quisesse comer até mais tarde, e começámos a ter um cliente de turismo», conta satisfeita, enquanto um grupo de ingleses petisca animado ao fundo da sala.

A tábua mista com secretos, cachaço, lagartos e plumas de porco preto, acompanhados de migas de coentros, é uma boa opção para partilhar, confirmando a ideia de que «a melhor rede social ainda é uma mesa rodeada de amigos, na companhia de um bom vinho», lê-se numa placa na parede. Entre as vinte referências que têm, todas do Alentejo, o destaque vai para os vinhos do Monte da Ravasqueira, eleito produtor do ano pela revista Grandes Escolhas.

O Monte da Ravasqueira faz vinhos desde 2000. Tem 19 castas plantadas (Fotografia de Orlando Almeida/GI)

Poucos serão os sítios em que se pode viajar tão rapidamente do copo à origem do vinho. Aqui, a viagem não toma mais de dez minutos de carro e inclui passagem pela icónica rotunda decorada com uma cadeira gigante a dar as boas-vindas ao município. Passada a estrada de terra batida logo surge o portão da quinta, comprada por D. Manuel de Mello como casa de família em 1943, e que na altura não tinha sequer vinhas (produzia gado e cereais).
Só em 1966, quando a Ravasqueira passou para as mãos de José Manuel de Mello, se começa a vislumbrar a sua vocação vinícola. Antes, as atenções seriam todas viradas para a arte equestre da atrelagem, em que o empresário ambicionava ser campeão mundial. Em 1996 cumpriu-o, com quatro cavalos lusitanos criados na quinta a puxar uma Spider, atrelagem já equipada com modernos travões de disco, no campeonato do mundo na Bélgica.

Desse empreendimento quase único no país ficou aquela que é uma das maiores coleções privadas do género na Europa, composta por 37 coches, charretes, berlindas, entre outros, dos séculos XVIII ao século XX, e dos quais 22 estão em exposição para quem os quiser admirar.

O projeto vínico arrancou a sério em 2000, com a plantação dos atuais 45 hectares de vinha, com dezanove castas, entre os montes e vales da propriedade com três mil hectares. Pedro Pereira Gonçalves, enólogo e administrador, consegue escolher as melhores uvas graças à chamada viticultura de precisão, o que ajuda a fazer vinhos com qualidade e consistência. Ao todo são mais de 25 referências, divididas pelas gamas Monte da Ravasqueira (vinho comercial) e Ravasqueira (de especialidade). Só em 2017 a empresa engarrafou mais de 4 milhões de garrafas. Uma boa forma de provar os néctares e o azeite e mel que também produzem é ficar para almoçar no final da visita guiada.

Carne de porco com esparregado, um dos pratos que se podem comer n’ O Alpendre. (Fotografia de Orlando Almeida/GI)

De regresso a Arraiolos, vale a pena parar ainda no restaurante O Alpendre, mas sem pressas, pois as histórias de José Manuel Severino (mais conhecido como o Serpa) são muitas e vêm acompanhadas de provérbios como este: «Com água ninguém canta», atira com um sorriso na voz. Fala-se de vinho, e os do Monte da Ravasqueira lá estão, na garrafeira à entrada, seguindo daí para a mesa previamente guarnecida de cogumelos, torresmos, favas, queijo assado e presunto para abrir o apetite.

A mulher, Maria de Fátima, é quem cozinha tudo com mãos de ouro, especialmente as migas, das quais as de tomate e de espargos são as mais famosas, e os pratos de carne de porco preto e de vitela. As sopas alentejanas – como a imperdível sopa de cação – completam a oferta principal da casa aberta há 20 anos. Foi ali que José nasceu, cresceu e é dali que espera tão cedo «não abalar». «O Alentejo é a Alice no País das Maravilhas. Pode parar o carro à porta da minha casa com a chave na ignição, deixar o vidro aberto, vir almoçar, ir-se embora e está tudo no mesmo sítio.» O Alentejo a ser Alentejo.

 

Algo está a fazer com que o sistema não consiga mostrar a ficha ténica desejada. Pedimos desculpa pelo incómodo.

Reportagem publicada originalmente na edição de 5 de abril da revista Evasões.

 

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