O primeiro cemitério público do Porto, com cerca de dez hectares, surgiu em 1839, no lugar de uma quinta. Dessa altura subsistem algumas árvores majestosas, que tornam ainda mais aprazível a visita ao Prado do Repouso. Os jazigos-capela e demais monumentos recordam figuras e episódios marcantes da vida da cidade, enquanto os gatos da colónia residente, cuidada e esterilizada, posam para as fotografias. Tanto este como o outro cemitério municipal, o de Agramonte, fazem parte da Rota Europeia dos Cemitérios, gerida pela Associação de Cemitérios Significativos da Europa, sendo por ela reconhecidos como monumentais.
“Há pessoas que entram no cemitério só para passear”, comenta Nuno Pereira, chefe da Divisão Municipal de Saúde Pública e Bem-Estar Animal. Todos os jazigos de notáveis têm placas sinaléticas, seja pela pessoa inumada ou pela que assina o trabalho. Num lugar onde descansam personalidades como o poeta Eugénio de Andrade (num jazigo com traço do arquiteto Siza Vieira), a pintora Aurélia de Souza ou o médico e artista plástico Abel Salazar, não faltam histórias para contar.
Uma das mais curiosas prende-se com o monumento em memória de Teresa Maria de Jesus e Henriqueta da Conceição, mandado erguer, por esta última, em 1868. “Amor é amor”, lê-se na placa, e no túmulo, junto à escultura de São Francisco, há rosas brancas frescas. Joel Cleto, historiador, arqueólogo e divulgador da história e do património, conta que costuma parar ali, nas visitas que faz, para lembrar como Henriqueta, prostituta famosa na cidade, terá aproveitado momentos a sós com o corpo da amada, falecida prematuramente, para lhe cortar a cabeça e guardá-la em casa.
Por outro lado, são recordados acontecimentos trágicos, como o incêndio que, em 1888, destruiu o Teatro Baquet, causando mais de cem mortes – se em Agramonte existe um monumento às vítimas, o fundador do teatro, António Pereira Baquet, está no Prado do Repouso. Que tem, na entrada principal, uma homenagem a outras vítimas, desta feita, da revolta republicana de 31 de Janeiro de 1891.
Aquele monumento fica perto do busto de Francisco de Almada e Mendonça, corregedor da comarca do Porto, cujos restos mortais foram trasladados para ali, aquando da inauguração, para quebrar a resistência do povo ao enterramento nos cemitérios, quando deixou de ser permitido fazê-lo nas igrejas, explica Joel Cleto. A escultura desse poderoso, note-se, é da autoria de Soares dos Reis.
Desde a pandemia que os ciclos culturais dos cemitérios do Porto se encontram suspensos, havendo, no entanto, planos para os retomar, segundo informações da Câmara. Por agora, quem quiser visitar o Prado do Repouso e Agramonte a solo encontra um roteiro desdobrável online e nas respetivas secretarias, com diversos pontos de interesse assinalados. É só ir à descoberta.
Joel Cleto: “Os cemitérios são um manancial de informação”
“Os cemitérios são um manancial de informação”, começa por dizer Joel Cleto, historiador, arqueólogo e divulgador da história e do património, que já orientou visitas guiadas a vários, no Porto. Tal como os conhecemos hoje, os cemitérios remontam ao século XIX, mas o seu interesse por eles é muito anterior, tanto que se especializou em locais de enterramento pré-históricos (antas e dólmenes). “Os cemitérios são espaços para os vivos, espaços onde as pessoas acabam por refletir as suas mentalidades, os rituais religiosos e a sociedade de cada época, a forma como a sociedade se organiza, a sua hierarquia”. Na pele de guia, e enquanto historiador, interessa-lhe explorar os contextos históricos, sociais e artísticos de cada era, refletidos naqueles lugares, mas também procura trazer à luz as biografias de personalidades lá sepultadas e, claro, as histórias que vão aflorando, não necessariamente tenebrosas, embora as haja.
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