Francisco Queiroz: “O turismo cemiterial nasce a partir do momento em que os cemitérios existem”

Francisco Queiroz, historiador de arte e especialista em turismo cemiterial. (Fotografia de Cristina Moscatel/DR)
Recentemente, em Felgueiras, o historiador de arte Francisco Queiroz elevou para 17 o número de cemitérios portugueses onde já fez visitas guiadas. Não duvida do seu potencial turístico, que considera ainda algo desaproveitado.

Nas visitas que orienta, Francisco Queiroz puxa pela arte, pela história, pelas curiosidades. Não lhe interessa a morbidez. O turismo negro por vezes caminha de braço dado com o turismo cemiterial, mas são coisas diferentes. “O turismo cemiterial é algo que nasce a partir do momento em que os cemitérios existem, porque os cemitérios são feitos para serem visitados”, defende o investigador e autor da tese de doutoramento Os cemitérios do Porto e a arte funerária oitocentista em Portugal.

A sua tese foi sobre os cemitérios do Porto.

A de doutoramento, sim. O título é Os cemitérios do Porto e a arte funerária oitocentista em Portugal. Comecei nesta área não por vontade minha. Uma conjugação de várias circunstâncias empurrou-me para aqui. Quando estava a fazer o mestrado, fui parar aos cemitérios, porque a minha intenção era fazer um estudo sobre ferros decorativos. Depois percebi que nos cemitérios, além de existirem ferros decorativos, existiam outras coisas interessantes, e que na altura não estavam estudadas em Portugal. Para entender os ferros, tinha de entender as capelas, os mausoléus. Para entender as capelas e os mausoléus, tinha de entender quem eram os arquitetos, os construtores. Depois, tinha de entender quem eram as famílias. E, quando dei por ela, já estava a estudar tudo.

Não tinha, então, um interesse particular por cemitérios.

Não. Aliás, não gosto de funerais, não gosto de morte. Consigo puxar tudo o que tem a ver com visitas guiadas para aspetos relacionados com arte, história, curiosidades…. Não temos de ser mórbidos no turismo cemiterial, muito pelo contrário. O turismo cemiterial, quando vai pela via do turismo negro, que são duas coisas parecidas, mas não iguais…

Pensei que eram sinónimos.

Não. São duas formas do turismo que se tocam e se intercetam, mas o turismo negro é muito diferente do turismo cemiterial em certas coisas. Por exemplo, quando alguém vai a uma prisão política, ou a um campo de concentração, isso é turismo negro. Porque estamos a falar de espaços que têm em comum terem sido outrora espaços de sofrimento, morte, dor. Obviamente que os cemitérios também têm isso. Mas são muito mais do que isso. O cemitério é um espaço construído para evocar coisas que têm a ver, especificamente, com memórias, com destacar as virtudes das pessoas que faleceram, destacar a sua riqueza, os seus feitos políticos, militares, artísticos. Às vezes, espantam-se quando digo, nas formações que já dei sobre este assunto, que o turismo cemiterial nasce a partir do momento em que os cemitérios existem. Porque os cemitérios são feitos para serem visitados. Pode haver turismo negro nos cemitérios, mas o turismo cemiterial é uma coisa à parte, por mais interceção que exista.

Quando faço visitas guiadas, costumo dizer que os cemitérios foram feitos para os vivos. Ter uma estátua, ou um relevo, ou um obelisco, nada daquilo serve aos mortos. Serve para os vivos. É feito pelos vivos, encomendado pelos vivos, e é para os vivos verem e tirarem ilações, ou para fruírem, em termos estéticos.

E como definiria o turismo cemiterial?

Vou dar dois exemplos. O primeiro é o cemitério mais conhecido do mundo, que se situa em Paris: o Père-Lachaise. Em meados do século XIX, nas livrarias em Paris e não só, existiam disponíveis guias de visita ilustrados – com gravuras dos monumentos e, em muitos casos, transcrições completas dos epitáfios, sobretudo quando eram em verso – com reedições. Portanto, os cemitérios, tal e qual os conhecemos, são um marco civilizacional típico da época romântica, e foram concebidos para serem espaços de visita, contrariando o que existia antes, que era um enterramento mais ou menos anónimo dentro das igrejas ou em volta delas – a maior parte das pessoas que não tinham grande fortuna não tinha sequer hipótese de ter um monumento. Foi para acabar com isso, e para criar espaços próprios para celebrar os mortos numa perspetiva romântica, portanto, numa perspetiva de exaltar as suas virtudes, chamar a atenção do visitante para o caráter efémero da vida, aproveitar essa oportunidade para contratar artistas que fizessem túmulos com esculturas interessantes. Agora, a segunda parte: quando vamos visitar um cemitério, é a mesma coisa que irmos visitar um museu ao ar livre. Os cemitérios de grande dimensão, nas grandes capitais, são verdadeiros museus ao ar livre. Porque têm os túmulos das grandes figuras, porque os grandes artistas estão representados com peças de escultura fantásticas, peças de arquitetura em miniatura, mas peças originais. Em muitos casos, certos estilos e soluções arquitetónicas surgem primeiro nos cemitérios. Quando faço visitas guiadas, costumo dizer que os cemitérios foram feitos para os vivos. Tudo o que lá está não serve aos mortos. Ter uma estátua, ou um relevo, ou um obelisco, nada daquilo serve aos mortos. Serve para os vivos. É feito pelos vivos, encomendado pelos vivos, e é para os vivos verem e tirarem ilações, ou para fruírem, em termos estéticos. O turismo cemiterial é simplesmente recuperar aquilo que foi o cemitério romântico.

Portanto, quem visita um cemitério pode ir atraído por múltiplos fatores: pela arquitetura, pela arte, pela história, pelas pessoas ilustres que lá estão sepultadas…

Sim, sim. Há tanta coisa que se pode fazer no cemitério… É quase inesgotável. E em Portugal já temos muitos exemplos. No caso de Lisboa, neste ano já se fez uma primeira visita especificamente sobre figuras forenses, pessoas que investigaram crimes célebres… No Porto, uma das primeiras realizações mais invulgares que se fizeram foi o circuito pelos compositores e músicos – a visita tinha momentos de paragem em que músicos interpretavam peças desses autores. E começo a achar que um dia vai ser possível fazermos uma visita guiada dedicada a Gomes de Sá em que vamos comer o [seu] bacalhau no cemitério. É uma forma de evocar a personalidade. As possibilidades são imensas. E, se formos para fora do país, ainda mais. Por exemplo, nos grandes cemitérios norte-americanos, que têm espaços relvados, às vezes fazem corridas de estafeta, piqueniques, aulas de dança… Sei que isso é um bocado estranho na perspetiva portuguesa, mas se pensarmos em cemitérios mais abertos, tipo bosque, não é assim tão estranho. É tudo uma questão de contexto.

Não tem de ter a carga pesada que aqui ainda se põe.

Não, mas aqui é também o próprio espaço que leva a isso. Quando uma pessoa entra num cemitério e vê jazigos recentes, que quase instintivamente associa aos seus jazigos de família, depois tem muita dificuldade em descolar da imagem de dor, não é? Agora, quando vê cemitérios com jazigos muito mais antigos, ou de um tipo completamente diferente, tem mais facilidade em encarar esse espaço como um espaço quase museológico. O turismo cemiterial é isso mesmo.

Quando falámos sobre a visita guiada que ia estrear no Cemitério de Felgueiras [no passado dia 14 de outubro], disse-me que era já o número 17 na sua lista.

É o décimo sétimo cemitério onde já fiz visitas guiadas. Em Portugal, sou a pessoa que fez mais visitas guiadas em cemitérios, em termos de número de cemitérios; em termos de número de visitas não devo ser.

Na altura, comentou que o turismo cemiterial não pedia necessariamente um cemitério vistoso. Também há riquezas em cemitérios que, à partida, não são tão monumentais?

Sim. Por exemplo, na visita em Felgueiras, que estava sobretudo vocacionada para pessoas que vivem naquela zona e querem conhecer melhor a história, chamei a atenção para alguns aspetos desse cemitério que são originais, só existem ali. Há um túmulo que tem um obelisco e três retratos em relevo, em três faces diferentes. Isso é uma coisa raríssima. Os retratos fotográficos são mais comuns. Agora, retratos esculpidos em relevo, no século XIX, em três faces diferentes do obelisco, é algo completamente invulgar. Tive a sorte de ter o auxílio de um historiador local que depois fez o aprofundamento sobre as figuras lá sepultadas.

Começou a fazer visitas em cemitérios há mais de 20 anos.

Comecei em 1999, no século passado.

Francisco Queiroz numa das suas visitas guiadas a cemitérios.
(Fotografia de José João Roseira/DR)

Nas suas viagens, tenta visitar os cemitérios dos sítios onde passa?

Agora não tanto. Nas últimas férias, estive em duas capitais europeias e só vi um cemitério. E nem sequer era o mais importante. A verdade é que há algumas cidades europeias – concretamente, Génova e Londres – onde só fui para ver cemitérios. Fui a Londres só para ver o Cemitério de Highgate.

Porquê esse cemitério, em especial?

Londres tem uma espécie de circuito – não é um circuito organizado, porque a maior parte dos cemitérios é privada. Existem os chamados sete magníficos, os sete principais cemitérios de Londres. Desses, o de Highgate é, provavelmente, aquele que tem mais interesse na perspetiva de quem vem do sul da Europa. No caso de Génova, também só fui ver o Staglieno. Só em termos de escultura, a quantidade de peças que lá estão, de grande qualidade, equivale a todas as peças de escultura que existem nos cemitérios portugueses. Portanto, posso passar um dia inteiro ali. É como se estivesse no Museu do Louvre, ou num dos grandes museus da Europa.

Quando entra num cemitério que não conhece, qual é a primeira coisa em que repara?

Depende do cemitério. Se já tiver um conhecimento prévio, provavelmente estou interessado em encontrar certas coisas. Se não, vou à descoberta, dentro do espírito romântico, quase como quem anda por um jardim, vai percorrendo aquelas ruelas e de repente encontra uma cascata e, mais à frente, um lago. Claro que, no final, fico com uma ideia do que é o cemitério, quais as influências, porque estou dentro da área. Se for uma pessoa que não está dentro da área, provavelmente, faz uma fruição estética e histórica um bocadinho mais simples, mas não deixa de fazer.

Neste momento, em Portugal, temos muita falta de visitas guiadas de qualidade, por especialistas, noutras línguas que não português. Há alguns guias que vêm de fora com grupos e levam as pessoas ao cemitério. Mas não é a mesma coisa que ter uma visita especializada.

Mesmo que não se vá no contexto de uma visita guiada, há esse modo de descoberta que se pode acionar.

Absolutamente. Aliás, é das coisas mais interessantes. O turismo cemiterial, em Portugal, ainda é um bocadinho incipiente em alguns aspetos. Mas o grande problema que temos, nesse aspeto, é que as entidades que geram os cemitérios, na sua esmagadora maioria, são públicas, não estão vocacionadas para utilizar o cemitério como uma forma de negócio. Obviamente que o cemitério gera rendimento. Em algumas autarquias, o cemitério é aquilo que gera mais rendimento, mas na sua função cemiterial: os enterramentos, os jazigos, etc. Agora, no turismo, para uma Câmara Municipal, é muito complicado justificar que tem alguém a organizar visitas guiadas para estrangeiros, para não munícipes, para não portugueses. É muito complicado justificar que faça visitas guiadas a pagar. Porque é uma Câmara Municipal, é um serviço público. Neste momento, em Portugal, temos muita falta de visitas guiadas de qualidade, por especialistas, noutras línguas que não português. Há alguns guias que vêm de fora com grupos e levam as pessoas ao cemitério. Mas não é a mesma coisa que ter uma visita especializada. Precisávamos de ter visitas especializadas em inglês. Já não digo noutras línguas.

Ou seja, o potencial turístico dos cemitérios portugueses…

…não está a ser aproveitado. Há uns anos, fiz umas gravações para um documentário sobre o Cemitério da Lapa [no Porto]. Passei lá muitas horas. Essa experiência permitiu-me perceber que eram muito mais as pessoas que entravam no cemitério sem saber o que aquilo era, só na perspetiva de visitar, do que as pessoas que iam visitar os jazigos ou colocar flores. Já nessa altura era assim. Hoje, será muito mais. No Cemitério dos Prazeres [em Lisboa], quase todas as pessoas que vi são turistas. Passam por uma rua, passam para outra, param, espreitam, veem alguma coisa interessante, decidem mudar de caminho. Não têm guias. Muitas delas não têm um folheto. Não estou a dizer que não existam. Existem. Mas o cemitério também se presta a isso. Essa deambulação quase solitária vem desde o século XIX. O conceito de cemitério, no século XIX, era esse. Era o espaço da meditação, o espaço em que a pessoa se encontrava com ela própria, e via a arte, os poemas esculpidos na pedra. Há muita gente a fazer isso. Sozinha, em casal…

Portanto, há muitas pessoas interessadas em conhecer os cemitérios. Não só turistas estrangeiros, presumo.

No caso dos portugueses, já não é tão comum. Tem a ver com aquilo de que falei: os portugueses têm dificuldade em entrar num cemitério como o dos Prazeres e abstrair-se do cemitério onde têm os seus entes queridos, porque, provavelmente, será parecido. Os portugueses, em geral, em cemitérios históricos, não são os principais turistas. Os principais são os que vêm de outros países, que encaram esses cemitérios como coisas quase exóticas. Para alguém que vem dos Estado Unidos e entra nos Prazeres, com aquela quantidade enorme de túmulos brancos, com ciprestes… Aquilo é absolutamente exótico, invulgar. E é importante percebermos isso. Da mesma maneira que, quando alguém em Portugal vai ao Père-Lachaise, também acha aquilo fantástico. Quase nem se lembra de que está num cemitério.

Se houvesse mais visitas organizadas, talvez as pessoas em Portugal também se abrissem mais, não?

Sim. Mas este é um processo imparável. Já ando a dizer isto há anos. Ao início, as pessoas riam-se de mim, achavam que eu era um bocado doido, mas sempre achei que tinha razão. Ainda estamos no começo.

 

 




Outros Artigos





Outros Conteúdos GMG





Send this to friend