Desconfinar: bons discos para ouvir na estrada, de mãos ao volante

(Fotografia: Rui Oliveira/GI)
Um volante entre as mãos. Cabelos ao vento é opcional. Desconfinar por aí. A estrada como metáfora de uma liberdade arrancada das garras de dias estranhos. Em rigor, será rara a alma que nunca sentiu o apelo de preencher o espaço entre os pés e o horizonte. Só, muito só. Ou de vontade dada com parceiros. Os eternos e os outros. E, depois, o som. Sem fúria.

Direitinhos à autoestrada

Steppenwolf, “Live”, 1970
“Get your motor runnin’; Head out on the highway; Lookin’ for adventure; And whatever comes our way”. E pronto. Está dado o toque. São os primeiros versos do clássico “Born to be wild”, que permitirá aos norte-americanos Steppenwolf não serem engolidos pelos alçapões da História. O hard rock que abraçaram como missão estética funciona, de facto, muito bem enquanto banda sonora para quem se dispuser a desfrutar quilómetros de autoestrada e o duplo “Live” testemunha exemplarmente as virtudes da banda de Los Angeles quando em cima de um palco. Volume ge-neroso e berre-se as palavras de, por exemplo, “Tighten up your wig”, “Monster”, “Power play” e “From here to there eventually”. Selvagem. Como um lobo esfomeado.

 

De celebração em celebração

The Pogues, “Rum sodomy & the lash”, 1985
Os ingleses The Pogues deitaram mão à irreverência punk, solidificaram-na com a tradição folk britânica e beberam em quantidades épicas. A música que conseguiu rastejar para fora do estúdio de gravação após o programa de ação de Shane MacGowan e acólitos é, na essência, de celebração, mesmo quando a lágrima lhe salta. Nesse sentido, “Rum sodomy & the lash” é um companheiro de viagem im-prescindível. Os temas com queda para a desbunda ajudarão, por certo, a tornar a marcha mais entusiasmante. Os mais contemplativos serão desculpa para se brindar uma, duas, 14 vezes às memórias que quiserem comparecer. Depois de desligar o motor. Evidentemente.

 

Para nenhures com um largo sorriso

Talking Heads, “Little creatures”, 1985
Bastaria “Road to nowhere” para que “Little creatures” constasse do cardápio de um papa-quilómetros que se preze. No entanto, o LP oferece mais oito motivos para que a jornada seja entusiasmante ao ponto de não se conseguir deixar de cantarolar durante todos os momentos em que os pneus se vão desgastando. Pop realmente inteligente – cortesia das letras de um escocês, David Byrne, radicado em Nova Iorque, EUA – proposta por um grupo que sorvia matéria–prima de todas e quaisquer fontes tipológicas. Abre com a antológica “And she was” e encerra as festividades com a já referida “Road to nowhere”, inquietante título que, paradoxalmente, nos “chuta” para cenários mais soalheiros dos que temos vivido.

 

Em busca de um país que o cinema sublimou

U2, “The Joshua Tree”, 1987
Um disco destinado aos grandes espaços. Cheio de “hinos” escritos por um quarteto europeu – no caso, irlandês – totalmente rendido à ideia de uns certos Estados Unidos que talvez apenas vá sobrevivendo na mente de cinéfilos sem dinheiro para viver a experiência “in loco”. Diga-se que os temas abordados no quinto álbum de originais dos U2 são bem menos monolíticos do que a descrição de há algumas linhas pode fazer crer, mas, por outro lado, não restem dúvidas de que “ Where the streets have no name”, “I still haven’t found what I’m looking for” ou “In God’s country” ganham pungência assombrosa se escutadas enquanto um veículo responde aos nossos desejos de evasão. Rock para (re)descobrir.

 

À velocidade do som seja para onde for

Love and Rockets, “Love And Rockets”, 1989
Nos três álbuns anteriores, os ingleses Love and Rockets tinham levado a sonoridade “Som da Frente” – excecional programa de rádio que o já falecido António Sérgio fez o favor de nos oferecer durante cerca de uma década – até onde era criativamente possível, alicerçada em guitarras à beira de um ataque de nervos, secção rítmica fluida e vozes a fugir, à justa, da distorção. Chegados ao LP homónimo, “abriram” o som e catapultaram-no para os tops. Ainda assim, rock merecedor de atenção e, no caso em apreço nestas páginas, excelente base sónica para acelerações várias. “The purest blue”, “Motorcycle”, “I feel speed” e, sobretudo, “So alive” existem para nos levar. Para onde, fica por conta de cada um.

 

A alucinação tem diversas faces

Ali Hassan Kuban, “Walk like a nubian”, 1992
Experimente-se conduzir pelo deserto africano com “Walk like a nubian” – tocado assustadoramente alto – por companhia. A experiência, se devidamente interiorizada, poderá confundir-se com uma alucinação. O mais curioso é que a música do egípcio (que expirou pela última vez em 2001) fazia-o ganhar a vida e a notoriedade como animador de casamentos. A Europa reparou nele quando Kuban já vislumbrava os 60 anos, mas foi muito a tempo de apreciar o que tradição árabe “violada” por um baixo usurpado ao funk, polirritmias várias envoltas em melodias orientais e microtonalidades em tentativas de hipnotismo podem fazer por um corpo que se quer elétrico (com a devida vénia aos Weather Report).

 

Frente ao desconhecido a cada curva

Megafone, “Megafone”, 1997
João Aguardela, fundador dos Sitiados, resgatado pelos deuses em 2009, aos 39 anos, iniciou a aventura Megafone sob uma premissa curiosa: aliar a tradição lusa aos ditames do drum ‘n’ bass. Em termos estéticos, a aventura não foi plenamente conseguida, longe disso. Porém, o primeiro tomo do Megafone traduzia uma noção de risco que não era exatamente vulgar no Portugal musical de então. Além disso, quando embrenhados nas estradas nacionais sob a chuva eletrónica a que foram sujeitas as recolhas dos musicólogos Michel Giacometti e José Alberto Sardinha, a sensação é a de que um país de diversas faces nos aguarda a cada curva. De preferência, escute-se durante condução noturna.

 

Para todos os destinos e sem pressas

O Bom, o Mau e o Azevedo, “O Bom, o Mau e o Azevedo”, 2019

É obra de quatro portuenses e predispõe para a fuga. Literal e tipológica. Isto porque “O Bom, o Mau e o Azevedo” está pronto para quaisquer ouvidos e paisagens. Com os oito pés bem pousados na surf music, no psicadelismo e nas litanias guitarrísticas dos “american primitives”, a música, instrumental, destes veteranos é viciante, mercê, em particular, da capacidade de ela se adaptar às imagens em que a quisermos incluir. É, portanto, ideal para aconchegar aquelas horas em velocidade de cruzeiro, quando a viagem segue tranquila, sem demasiada pressa para chegar, agora que já se conseguiu partir. Não ficaria mal num eventual “road movie” do realizador norte-americano Quentin Tarantino. E resiste a audições consecutivas.




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