Uma visita ao Cemitério da Lapa, no Porto, pode tomar rumos diversos, tais são as suas riquezas. Uma delas é a monumentalidade, patente logo na entrada, que exibe a clássica caveira com duas tíbias, símbolo da morte, e a ampulheta alada, que por vezes exibe asas de morcego, representando a suspensão do tempo, o infinito. Sem esquecer, claro, os versos do poeta ultrarromântico Soares de Passos, ali sepultado: Eis ossos carcomidos, cinzas frias, / Em que param da vida os breves dias, / Mortal, se quanto vês te não abala, / Ouve a tremenda voz que assim te fala, / Lembra-te, Homem, que és pó, e que dest’ arte / Em pó, ou cedo ou tarde, hás de tornar-te.
O Cemitério da Lapa, considerado o mais antigo cemitério romântico português, é anterior ao decreto de 1835, que institui os cemitérios públicos: o primeiro enterramento lá ocorreu em 1833, embora a bênção oficial date de 1838. Com o Cerco do Porto e a epidemia da cólera que se seguiu, os locais de inumação habituais, nas igrejas, ficaram lotados, pelo que a Irmandade da Lapa pediu autorização a D. Pedro IV para construir um cemitério privativo – este, que hoje é Imóvel de Interesse Público e faz parte da Rota Europeia dos Cemitérios.
No interior, os jazigos-capela interpelam-nos, com as suas fachadas trabalhadas e cheias de simbolismos, ostentando até brasões de família. Alguns quase parecem casas, podendo albergar mais de 25 pessoas, observa Eva Cordeiro, coordenadora dos Serviços Culturais e Arquivo da Irmandade da Lapa. Somos seduzidos pela arquitetura, pela arte, mas também pela história e pelos afamados moradores – como o escritor Camilo Castelo Branco, cujos restos mortais estão no jazigo da família do amigo João António de Freitas Fortuna.
Curiosamente, naquele jazigo descansam, além do autor de “Amor de perdição”, mais duas pessoas que desistiram de viver: Urbino Emílio e Clementina Sarmento, protagonistas de um amor com desfecho trágico. Ainda neste verão o Cemitério da Lapa foi palco de uma visita guiada noturna dedicada aos suicidas. Desde 2016, a Irmandade vem promovendo ali, nos meses mais quentes, um ciclo de visitas temáticas orientadas por especialistas que podem abordar assuntos como a maçonaria ou as personalidades da burguesia portuense.
De resto, existe a possibilidade de agendar uma visita orientada mais genérica em qualquer altura, e uma simples deambulação pelo cemitério, de livre acesso, revela muitas peculiaridades. Há a escultura de um bebé a chorar, na derradeira morada de uma mulher que deixou órfãos nove filhos. Há o jazigo do contratador do tabaco Mendes Braga, com a figura de um cão, que terá permanecido lá, fiel, após a morte do tutor. E há toda uma simbologia alusiva ao sono eterno e à saudade que se repete, passo após passo.
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