Opinião de João Mestre: A falta que o tédio nos faz

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Era normal uma criança entediar-se nos anos 1980. Esse tédio forçava-nos a pensar, a imaginar, a refletir sobre as coisas. Aquilo era a nossa meditação.

O avô Arnaldo era um homem rijo, à antiga. A pele das mãos feita cabedal, os gestos poupados e certeiros, as conversas resumidas ao essencial. Todas as tardes, depois do almoço, sentava-se no pial, abrigado do castigador sol algarvio. Ele e outros homens rijos, à antiga. Todos de chapéu preto, botas de trabalho, cigarro enrolado nos dedos grosseiros. Todos eles poupados nos gestos e nas palavras.

As conversas, sobre a colheita desse ano, o preço da alfarroba ou quantas amendoeiras um javardo tinha partido na noite anterior, desenrolavam-se ao ritmo de uma partida de golfe. Um desabafo aqui, a resposta ao cabo de uma pausa, uma pergunta a propósito longos segundos depois. Aquele momento repetia-se todos os dias, durante as lentas horas de calor. Portanto, havia um sentido de saborear o momento, ver o tempo passar, já que nas toscas ruas de pedra nada passava, nem sequer uma aragem.

Eu não tinha nada para fazer, então sentava-me ao lado do avô Arnaldo, e dos homens do monte. Escutava as conversas intermitentes, esperava que o tempo passasse. Aborrecia-me de morte. De vez em quando, a minha mente levantava voo, zarpava dali, sei lá por onde, inventava conversas, planeava brincadeiras, e depois voltava a aterrar, no tédio do momento. Era normal uma criança entediar-se nos anos 1980. E esse tédio forçava-nos a pensar, a imaginar, a refletir sobre as coisas, a reparar no comportamento de um carreiro de formigas, na textura irregular de uma parede de cal, nas mãos calejadas do avô Arnaldo. Aquilo era a nossa meditação, antes do entorpecimento de uma hora de desenhos animados que a RTP nos dava ao final da tarde, a acompanhar fatias de pão com Tulicreme e canecas de leite com Coqui.

No verão passado, dei por mim entediado. Não na serra algarvia, mas no planalto transmontano. Sentado no terraço, na hora de calor, sem 80 canais de televisão à escolha, internet rápida ou um quiosque onde comprar o jornal. A família saíra para ver a procissão, e o ateu ficou em casa, sozinho. A olhar para uma ladeira de olival, para a qual já olhei centenas de vezes, sem estar à procura de nada, até que a minha cabeça voltou a levantar voo. Imaginei a estrutura perfeita para construir uma cabana no topo de uma das oliveiras, observei os movimentos repetitivos de um burro a pastar, o som da enxada do vizinho que cavava a horta. Dei por mim a calcular se seria capaz de pular de copa em copa. A magia do tédio.

Devem ter passado umas duas horas. Um par de horas em que consegui, à falta de melhor palavra, esvaziar a cabeça, em vez de enchê-la com a informação, a distração ou o excitamento que normalmente usamos para matar os momentos livres que a vida nos dá. Tirei os olhos do ecrã e pus-me a pensar nos longos verões em casa do avô Arnaldo. Pela primeira vez em duas semanas de férias, descansei a cabeça.

O tédio, afinal, faz-nos falta. Em particular, às gerações que cresceram com todo o entretenimento do mundo na ponta dos dedos e entregue à velocidade da luz. O tédio solta a imaginação, desenleia os nós que trazemos na cabeça, desenvolve a virtude da paciência. É, também ele, uma forma de evasão. Precisamos de entediar-nos mais.

 

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