Povo que vives no rio

Avieiros do Tejo. Ali para os lados do Ribatejo, existe uma comunidade piscatória que continua a viver (quase) como antigamente. Um pedaço de rio e de terra em estado bruto, puro, entre a dura realidade, a fé e a literatura. Veja também o vídeo abaixo.

Não está a falar a sério, pois não, senhor Fernando? É claro que estou. Houve um dia em que apanhei mais de cem quilos de fataça. Mas depois vieram os golfinhos e comeram o peixe todo. De outra vez foram para aí quinhentos dele, mas também se perderam. Estava só com a minha camarada e não demos conta de tudo”.

Fernando Antão, a muletas dos noventa, filho e neto de pescadores, habitante do Escaroupim, no concelho de Salvaterra de Magos. Avieiro. Já não vai ao rio, que a anca não deixa, mas tem saudades, é claro que tem, apesar de tudo. “Vocês não imaginam a dureza daquilo, ter que remar o rio contra a maré”. Há cinco, seis, sete décadas, cem anos, a água estava gorda de peixe, mas a comida nem sempre chegava ao prato. Um vida de espinhos. Para equilibrar as contas e o estômago pescava à noite e de dia ”fazia também umas searas de tomate, milho, melão”.

A prima, dona Cacilda escapou às redes, não ao destino. “Vocês nem imaginam… coitados. Sofriam tanto. Se bem que no campo também era difícil”. Vida dura, assim na terra como no rio. Não se queixa, contextualiza. É ela quem tem as chaves da Casa Avieira. Pouco acima fica do Museu “Escaroupim e o Rio”, aberto em 2017, numa antiga escola. Eram habitações pintadas com cores primárias, em madeira, modestas, até porque parte da vida era feita nos barcos, nas bateiras, tantas vezes usadas como segunda casa. E cozinha e sala de estar e sala de partos. Dali via-se o fundo do rio, tão limpo, o céu e a luz. Tal como o primo também foi ali mesmo que Dona Cacilda chorou pela primeira vez. “A minha mãe queria que nascesse em casa da mãe dela, mas não deu. O meu pai remava, remava, mas eu tinha pressa de ver o Tejo”.

A mãe veio de Murtosa, o pai de Vieira de Leiria, conheceram-se nos bailaricos, que “os avieiros sempre gostaram de festa”, conclui, a sorrir, os olhos em festa.

Quem é esta gente, afinal?

Outros tempos. Um, dois, três, quatro, cinco. Hoje contam-se se pelos dedos os barcos de pesca na aldeia, apesar de, na última década, a crise ter feito regressar alguns pescadores, sobretudo em part-time. Dois são de recreio, da empresa Rio-adentro, dos irmãos Rui e Luís Domingos. É Rui quem nos acompanha, também ele descendente de avieiros.

Avieiros, a expressão repete-se, talvez esteja na hora enquadrar. Quem é, afinal, esta gente? Resultam de uma vaga migratória que, no final do século XIX, levou pescadores do norte e centro do país a trocar o Oceano pelo Tejo. Fartos do mau feitio do Atlântico e de uma frota que precisava cada vez de menos braços, desceram o mapa à pesca de sustento. Chegaram da Murtosa, Ílhavo, Ovar, Torreira ou Vieira de Leiria, mas foi esta quem lhes deu o nome, em grande parte graças ao escritor ribatejano Alves Redol. “Avieiros” é o título do seu romance publicado em 1942, em que retratava o dia-a-dia da comunidade. Apelidou-os também de “ciganos do rio”.

Um termo discriminatório, Rui? “Tem sobretudo a ver com o facto de serem nómadas, mas é verdade que havia alguma discriminação da população local, dos que viviam em terra. Não havia grande comunicação, relacionavam-se e casavam se sobretudo entre si”.

A sua história da é outra. Publicitário (o irmão é Engenheiro Agrónomo), vive entre Lisboa e o Escaroupim, mas garante que, mais ano menos ano, estará por aqui a tempo inteiro. Há muito que percebeu o potencial turístico desta área, mesmo que, a um olhar mais plano, tudo pareça algo abandonado, por vezes decadente. O Tejo está-lhe no sangue, nos olhos. “Reinaldo, Reinaldo”, grita, binóculos em punho, “ali à frente, no meio daqueles juncos? É um bispo-de-coroa-amarela, o primeiro que vejo este ano”. Também fotografa, de forma amadora, mas agora contém-se. “A certa altura dei por mim a colocar o barco no ângulo perfeito para tirar fotografias e quase me esquecia dos passageiros”.

O bispo-de-coroa-amarela esgueira-se da foto, mas não faltam um sem número de espécies a querer entrar no plano, milhafres, garças, corvos-marinhos, águias, falcões, garças-reais, garças-boeiras, garças-noturnas. Quem percebe de ornitologia sabe que este é “O Sítio”, pelo menos um dos melhores sítios no país para a observação. Há mesmo uma ilha das garças. São milhares. “Nidificam aqui cerca de sete espécies. Há uns anos dizia-se que era maior colónia da Europa”.

À medida que o barco avança, lento, multiplicam-se as ilhotas e bancos de areia, mouchões, canais secundários carregados de vegetação, sabugueiros, juncos, plantas que os avieiros usavam na pesca, nas redes, nos barcos, para fazer esteiras. Por necessidade, por defeito, tudo era orgânico, tudo se reutilizava, da natureza às latas de tinta. “Lembro-me de perguntar ao meu avô porque é que as casas tinham estas cores primárias, as mesmas cores dos barcos. Estava à espera de uma resposta muito elaborada, aquilo intrigava-me, e ele respondeu-me com aquela naturalidade que só a vida dá: era que o que havia. Era o que havia. Tínhamos um grande fascínio por ele. É este património que tentamos mostrar nos nossos passeios. Não olhar para o rio como um problema, como têm feito as autoridades nos últimos anos.” Mais dia menos dia promete ter também uma casa de petiscos. Uma casa avieira. Está quase, está pronta, pintada, “só falta um papel”. Papel, qual papel? O Papel? Lembram-se do sketch dos Gato Fedorento?

Ao fundo vê-se um barco, a bateira do senhor Guilherme, quase 90 anos em dia. Está com o filho. Ainda mais ao fundo, no Mouchão da Casa Branca, potros Lusitanos da Coudelaria de Alter a viver em estado selvagem cruzam o rio. Portugal esse país tropical, a menos de 45 minutos de Lisboa. “Vêm à procissão?” perguntam-nos à chegada ao cais. Procissão, qual procissão?

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Que a fé e Santa estejam connosco

A partida foi adiada das 10h30 para as 13h30, graças à chuva. À nova hora marcada apenas meia dúzia de barcos na água, se tanto, dois deles dos fuzileiros, que mesmo com a Santa a bordo nunca se sabe. As pessoas chegam a conta-gotas, algumas vestidas com o traje típico, afinal é dia festa. VI Cruzeiro Religioso e Fluvial do Tejo, procissão que, desde 2013, liga Malpica do Tejo a Oeiras. Um passeio dividido em várias etapas, este ano de 31 de maio a 24 de junho. A de hoje entre Caneiras e o Escaroupim.

Já passa da hora, é tempo de partir. José Gaspar, um dos organizadores, homem dos sete ofícios, um deles speaker e técnico som, agradece a forma como a aldeia os recebeu, elogia as cores e lindeza da paisagem e deixa a música correr – a Santa a entrar na água ao som da Canção do Mar, Povo que Lavas no Rio e Oh Laurindinha, palavras para quê?

O percurso é a descer – 15 minutos nem isso, e cá estamos, nos Cucos, um antigo assentamento localizado na freguesia de Benfica do Ribatejo – mas a festa, perdoem-nos o trocadilho, a partir de agora é sempre a subir. Surpresa, dupla surpresa – a paisagem, densa, frondosa, mais uma vez quase tropical, ribatejana, com canaviais que se estendem até à água – e o número de pessoas. Há dezenas, talvez centenas de participantes à espera, grupo de escuteiros e padre incluído, de onde apareceu tanta gente?

Primeiro canta-se, depois reza-se. José Gaspar, omnipresente, aproveita para distribuir postais da Santa. À frente a imagem, da parte de trás a oração. “Maria, Mãe de Jesus, Senhora do Tejo e dos Pescadores. Aconchego dos homens e das mulheres que nas suas bateiras trazem o pão e o sustento para a sua família”.

Tradição que é tradição, cultura que é cultura, tem que ter uma santa, neste caso a Nossa Senhora dos Avieiros e do Tejo”, a olhar pelos avieiros desde… 2013. 2013?! Porquê uma santa tão nova a olhar por uma comunidade tão antiga? Armindo Leite, marinheiro de profissão, avieiro por vocação explica. “Os pescadores são muito católicos mas é quando estão aflitos. Tivemos que criar uma de raíz”. Agora a sério, não vá alguém levar a mal. “Cada comunidade tem devoção a uma santa ou um santo diferente, uns queriam esta, outros queriam aquele, além disso há muita rivalidade entre as diferentes aldeias avieiras, por isso decidiu-se que mais valia um santo original que satisfizesse a todos”. O irmão de José Gaspar, padre, ajudou a concretizar o processo. “Foi tudo feito em consonância com a igreja”, esclarecem, em coro, para que não restem dúvidas.

São ambos de Alpiarça, nenhum deles pescador, ou avieiro, à semelhança de João Serrano, antigo professor do Instituto politécnico de Santarém, estudioso da comunidade há vários anos. Formam uma espécie de triunvirato, ajudaram a fundar a Confraria Ibérica do Tejo, a procissão, trabalham em conjunto com Espanha para ajudar a divulgar e não deixar morrer esta cultura. Nas mãos de José Serrano esteve a preparação de uma candidatura a Património da Humanidade, que entretanto se afundou. Política. Interesses. A vida. Prefere não falar nisso. “Interessa é ouvir as pessoas”, diz. Vamos ouvi-lo só mais dois minutos, depois largamos o caderno de apontamentos. “Os avieiros nem sequer estão no inventário do património imaterial, o que está a bateira das Caneiras. Nada mais. A cultura avieira não é património nacional. Não é do entendimento que a cultura seja candidatável, mas sim elementos da cultura. Mas a cultura está viva. Olhem para isto”.

Isto é gente a beber e a comer, um javali na brasa, dar lume às histórias. “Um dia ia no barco e cruzei-me com três javalis. Tive que tratar deles à paulada”, diz alguém, não interessa quem. “Isto a gente, às vezes, acrescenta um ponto, mas é tudo verdade”.

Caneiras, Cucos, Porto do Sabugueiro, Porto de Muge, Valada, de repente o dia passou, a noite chegou, a festa, essa, continua. “Atira o caderno, ao rio, pá, e pede uma mini”. Seja feita a vossa vontade. Uma mini, duas minis, três minis, uma grade – quanto é?, já está pago – e lá vem outra vez a procissão, o Bispo à frente, os barcos de novo na água, de Valada ao Escaroupim, um bréu que só a Santa e rios de experiência iluminam.

É domingo, quase segunda de trabalho, mas a mesa volta a encher-se de gente, como se o estômago não tivesse na memória de tudo o que dançou. “Ninguém faz festa como os avieiros” ouve-se, uma e outra vez. “Já vão embora? Isto ainda está a começar”.

Um último recado. “Olhe… escreva o que tem que escrever, mas não diga que somos demasiado simpáticos, está bem? A gente gosta de estar aqui no nosso canto”.

Está bem.


Dormir no carro
É fundamental fazer um passeio de barco para compreender esta comunidade, mas esta é também a zona perfeita para percorrer de carro. Ou de mota. Ou de bicicleta. De margem em margem, de aldeia em aldeia, sem medo de seguir por estradas de terra, cruzar a ponte Raínha Dona Amélia as vezes que forem necessárias, acampar à beira-rio. A Evasões 360 fez a reportagem ao volante de um Mini One Countryman, equipado com uma tenda especial capaz de alojar até dois adultos. Tem 2,1 m de comprimento e 1,3m de largura. Com jeito cabe também uma criança. E, surpresa das surpresas, monta-se em dois minutos. Custa 2.800 euros.


Sem Espinhas
Sável, enguia, fataca, bargo, achegã, lúcio… Rodrigo Castelo conhece os peixes do Tejo como poucos. Trabalha-os como ninguém. Também ele é descendente de avieiros. Era delegado de propaganda médica, sempre quis ter um restaurante, até que o destino lhe deu a mão. Foi despedido e “com a indemnização no bolso”, decidiu arriscar. O resultado é a Taberna Ó Balcão, em Santarém (a 10 minutos da aldeia de Caneiras), um espaço bem decorado, com azulejos antigos, uma televisão quase sempre sintonizada na RTP Memória e uma equipa totalmente composta por ribatejanos “graças a deus, não é condição obrigatória, mas aconteceu” que tem trabalhado os pratos da terra e do rio com um toque de autor. Um toque é pouco. Sente-se o trabalho de equipa, na cozinha, mas também o de campo. Muita pesquisa. Antes de se fechar na cozinha, Rodrigo atirou-se ao rio de corpo e alma. “Fui para o terreno e para água com os avieiros, fiz perguntas parvas. As perguntas mais parvas são aquelas que mais nos ajudam”. Que tipo de perguntas? “Queria saber se o peixe a ou b fosse um peixe do mar que peixe seria. Os pescadores riam-se se mas respondiam. Por exemplo, a fataça seria o robalo, o lúcio o cherne, o sável… bem o sável é quase um peixe de mar. Só vem ao rio desovar”. Trabalho, trabalho, trabalho e algum (neste caso, muito) talento, eis a fórmula. O resultado são criações como snack de caviar com ovas de barco, açorda de alho e coentros com lúcio ou achegã em seu leite, menu criado para nos impressionar (e impressionou), mas que, garante Rodrigo, qualquer pessoa pode pedir. Peixe de rio, de qualidade. Sem espinhas.

Taberna Ó Balcão
Pedro de Santarém 73, Santarém
Das 12h00 às 22h00. Encerra ao domingo.
Telefone 243055883
Preço médio: 25 euros

Rio-a-Dentro
Tel.: 915880518rio-a-dentro.pt
Passeios a partir de 25 euros por pessoa, por cerca de 2h30 de viagem. Partida e chegada desde o cais do Escaroupim.




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