Crónica de Luísa Marinho: Que viaje à janela quem não tem quintal

(Fotografia de Rui Manuel Fonseca / Global Imagens)
Desde muito nova, sou leitora de narrativas de viagens. Testemunhei a ganância da conquista com Fernão Mendes Pinto, vi coisas inacreditáveis com Marco Polo, naveguei com Sandokan combatendo a injustiça e andei à boleia com Jack Kerouac, desbravando o Oeste ao som do bebop.

Quando Almeida Garrett inaugura as “Viagens na minha terra” – com um “Que viaje à volta do seu quarto quem está à beira dos Alpes, de inverno, em Turim, que é quase tão frio como Sampetersburgo – entende-se. Mas com este clima, com este ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta, o próprio Xavier de Maistre, que aqui escrevesse, ao menos ia até ao quintal” – está a piscar o olho, como o admite referenciando o seu autor, ao livro “Viagem à volta do meu quarto”. Escrito em finais do século XVIII, esta curiosa obra, uma sátira à literatura de viagens, serviu também para o autor se entreter durante os 42 dias que esteve em isolamento, em prisão domiciliária devido a um envolvimento num duelo.

O tom das grandes narrativas é por ele utilizado para descrever pequenas coisas, e também pretexto para considerações filosóficas. Nestes tempos de recolhimento doméstico, atrever-me a fazer uma viagem como esta é um desafio apetecível. Posso medir a distância entre os móveis do quarto, falar da orientação das janelas ou descrever detalhadamente como os raios de sol se movem, de manhã, pela cama. Mas, sejamos francos, o século XVIII já lá vai e os objetos que nos rodeiam são outros. Claro que ainda há escrivaninhas e camas, mas também há tablets, telemóveis, comandos de TV. E parece ser mais apetecível viajar através de um ecrã do que no próprio quarto.

Desde muito nova, sou leitora de narrativas de viagens. Testemunhei a ganância da conquista com Fernão Mendes Pinto, vi coisas inacreditáveis com Marco Polo, naveguei com Sandokan combatendo a injustiça e andei à boleia com Jack Kerouac, desbravando o Oeste ao som do bebop. Depois, tornei–me a personagem principal de muitas viagens, com entusiasmo, mas sem as aventuras que viveram viajantes de outros tempos. Agora, em casa, e a sonhar com viagens futuras que não posso planear, volto a olhar para essas narrativas e a ter vontade de com elas partir à descoberta. O feed de notícias atualizado minuto a minuto vai-me distraindo desse propósito. Mas é possível pôr de parte, por momentos, essa vida digital. E pensar como Garrett – que com este clima, não recusaria, pelo menos, uma ida até ao quintal. Mas como não tenho quintal, distraio-me a apanhar sol da janela e a observar a vida que me chega de fora. Não há ulmeiros como paisagem, como tinha Xavier de Maistre, mas há prédios que ganharam vida nas últimas semanas.

Gosto de ver a senhora do primeiro direito a cuidar carinhosamente do jardim que montou na varanda, a adolescente do primeiro esquerdo a ler um livro ao final da tarde e as crianças do prédio ao lado, que no terraço inventam aventuras em patins em linha; num outro terraço, uma senhora pinta o muro de branco e ao fim da tarde trata das floreiras enquanto um rapaz passa alguns minutos a saltar à corda.

Eu, não tendo terraço, nem jardim, nem varanda, empenhei-me em limpar a marquise e a decorá-la com vasos onde em breve vão brotar feijões, coentros e orégãos. Entre eles, voltarei a abrir livros de aventuras e nem preciso ligar o ecrã.




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